
platô gestos
Gestos de uma professorarteira:
Dançar/Rabiscar/Gaguejar como possibilidades trans(de)formativas



É possível pensar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte ?
Não sabemos. Mas é essa pergunta que nos move desde o meio por aqui.
Move cada linha. Move cada dança.
...quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte...
Por esse mover gaguejamos as linhas rabiscadas nesta pista de dança. Pois, desde o tempo do ainda, “a ideia do bio (vida) como material para uma peça de arte estética é algo que me(nos) fascina” !!!
A ideia da produção de uma vida que em alguma medida escape à normalização, à deficiência e ao fascismo...




Deficiência:
(Desde uma perspectiva normalizante) o lugar da falta, lugar do não. Daquele que é eternamente incompleto, pois que desvia do UNO.

Normalização:
processo de tornar a diferença em mesmice.


Pois que no encontro com os estudantes, a professorarteira vive o “desejo de viver uma vida bela, e de deixar, como legado, uma existência bela”
Com que os gestos? Com que gestos inventar uma vida outra? Com que gestos para inventar uma vida bela? Quais os gestos que vão nos tornando professoras?
O dançar, o gaguejar e o rabiscar podem se forjar como gestos trans(de)formativos dos modos como a professorarteira vai se tornando, inventando possibilidades outras de serestaRexistir no mundo, escapando talvez daquilo que majoritariamente foi pensado para ela?



Se lhe perguntassem qual seu trabalho, peralta, ela responderia:
– Sentar no chão.
– Sentar no chão?
– Sim.
– Mas é arriscado, o chão é perigoso.
– Mas só dá para brincar assim. É a altura da relação.
Na saída, os pais entram pelos corredores da escola para buscar as crianças. A mãe de T.Z chega. T.Z. resiste. A professorarteira o toma pela mão e caminha com ele alguns passos, abaixa e lhe dá um genuíno abraço de despedida. T.Z. enrijece e, antes que qualquer um pudesse antecipar, dá um tapa no rosto da professorarteira.
Por um segundo, tudo para! Em kanon, todos olham assustados. T.Z. paralisa. Seus olhos arregalados fitando a professora.
A mãe é a primeira a reagir: seu rosto enrubesce, repreende T.Z., grita, pede desculpas, foge, enfia o filho dentro do útero e tenta justificar:
– “Desculpa, desculpa professora, meu filho é violento. Foi o que me disseram na outra escola. É preciso ter cuidado, mas ele às vezes não se controla e, e a gente precisou sair de lá.. e-e-eu não sei, não sei mais......”.
A professorarteira enfim reage:
–Violento? Não! Ele não é violento. (a professora respira e explica). Essa é a forma como ele sabe falar, ele está nos dizendo algo, mas a gente ainda não entende. Mas, aos poucos, vamos forjando nossos modos de conversar.
A professorarteira toma a mão de T.Z. entre as suas,leva-a até seu rosto novamente e a move como num carinho.
– Isso. Suas mãos são lindas e elas podem fazer carinho... isso, assim...
Os olhos sorriem.
Crônicas de rabiscos


Em 11 de março de 2020 a OMS (Organização Mundial de Saúde) decreta estado de pandemia em relação ao vírus Sars-CoV-2. Esta pesquisaescrita inicia-se no início do ano de 2021, segundo ano de distanciamento físico: corpos que não podem tocar-se, uso de máscaras e luta por vacinas. Um momento em que o mundo vivia (vive) a Pandemia da Covid 19, causada pelo coronavírus. Assim, em uma escrita que se produz como processo, incrustrada no tempo em que é forjada, as marcas deste tempo a atravessam, a produzem e são produzidas por ela. Nos anos de rabiscação desta pesquisaescrita em contexto global vivemos a Pandemia da Covid 19, mas escolhemos aqui também rabiscar esta palavra como PANDEM(ônio)IA para narrar da experiência de pandemia que temos vivido em nosso país que tem a ver com todo um contexto não apenas sanitário, mas também político e social que experimentamos durante este período, como explicitamos mais de forma mais direta na NotaPresa do platô Avós


Sentar no chão
, um gesto que cato e guardo.


Arteira:
Peralta, astuta, travessa, sapeca, levada... Impossível!


Professorarteira
Alterego? Heterônimo?
Personagem? Figura estética?
Nela cabem várias, forjada com fragmentos de muitas. Composta de fragmentos de outros no encontro com outros.
À tira colo, carrega uma sacola com achados de muitas histórias, nenhuma de sua propriedade.
Um personagem meio desforme e multiforme, qualquer... que pode, quem sabe, com outros, criar e explorar afetos e conceitos.
Uma figura estética a rodopiar sobre um plano de composição, forçando os limites das sensações a produzir afetos no encontro com o outro, com c.a.d.a. um.
Um modo de escapar do mesmo, em meio à crise e produzir um corte no caos.
Ama o encontro e odeia seus monstros... mas não é só isso que sente por eles.
Veste uma saia rodada mágica.
Um personagem malabarista a dançar conceitos sobre um plano de imanência.


Por aqui, ela nos tem acompanhado, há algum tempo, quase como uma sombra, por vezes oculta. Não apenas dá a pensar, mas ela mesma pensa por aqui. Não apenas é inspiração artística, como ela mesma produz sensações. Em alguns lugares meio escondida, mas nesse platô ela mesma tomou forma, rasgou o plano individual, íntimo, trouxe seus gestos múltiplos que são de muitas outras, mostrou-se multidão e requisita agora suas agulhas para tecer aqui, por ela mesma, os gestos catados pelos muitos lugares onde passou e das muitas pessoas que um dia foi e que vai se tornando. Ela seria como eu ou você, mas está mais entre nós, como uma amiga, entendendo a amizade como possibilidade de produzir pensamento , como uma relação que comporta “tanto a desconfiança competitiva com relação ao rival, quanto tensão amorosa em direção do objeto do desejo”.
Recorremos aos nossos amigos Deleuze e Guatarri que nos ajudam a pensar. No livro “O que é Filosofia?” afirmam que a filosofia é a arte de criar conceitos, mas só é possível criá-los entre amigos “como uma confidência ou uma confiança, ou então face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo.” . A esse amigo, nossos autores amigos chamam de personagem conceitual.
Entre os personagens conceituais, alguns permanecem escondidos, outros têm nome próprio, como Sócrates de Platão, este (afirmam) é o principal personagem conceitual. Alguns são antipáticos como o Sacerdote e os Homens superiores em Nietzsche, outros circulam entre a filosofia e a arte, ora criando conceitos, ora produzindo sensações como o espírito livre de Zaratustra. Os personagens conceituais não são um símbolo, uma alegoria, uma personificação abstrata, mas vivem, insistem e fazem viver. Pensadores que fazem gaguejar a língua e fazem da gagueira o próprio movimento de pensar. Agentes de enunciação que têm como papel manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações entre os planos.
São capazes de pintar o plano de imanência, que são a mesa, o platô, o solo, no qual se forjam os conceitos e, eles, interveem na própria criação de conceitos. “O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o contrário: O filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os "heterônimos" do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens. (...) O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais”.
É possível que, por vezes, estes se confundam com as figuras estéticas que operam no plano da arte, criando sensações. A arte, como linguagem das sensações, pensa por afetos e perceptos, que são sensações criadas em um plano de composição estética. Os personagens conceituais são potências de conceitos, já as figuras estéticas são potências de afectos e perceptos. Contudo os dois podem passar frequentemente um pelo outro, entrelaçando-se, “é que o conceito como tal pode ser conceito de afecto, tanto quanto afecto, afecto de conceito. O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro. (...) Um pensador pode, portanto, modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem do pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele o povoa com outras instâncias, outras entidades: poéticas, romanescas, ou mesmo pictóricas ou musicais. E o inverso também, Igitur é precisamente um desses casos, personagem conceitual transportado sobre o plano de composição, figura estética transportada sobre um plano de imanência: seu nome próprio é uma conjunção (...) Não fazem uma síntese entre arte e filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar (...) um malabarismo perpétuo.”
Arte e filosofia produzem cortes no caos e o enfrentam, ainda que de modos diferentes, “a arte não pensa menos que a filosofia”.
Deleuze e Guatarri identificam ainda uma terceira forma de pensamento: a ciência. São três as grandes formas de pensamento: A filosofia, a arte e a ciência, como um rizoma, as três se cruzam e se entrelaçam todo tempo. “A filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência constrói estados de coisas com suas funções. Um rico tecido de correspondências pode estabelecer-se entre os planos. Mas a rede tem seus pontos culminantes, em que a sensação se torna ela própria sensação de conceito, ou de função; o conceito, conceito de função ou de sensação; a função, função de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos, que restam por criar sobre outros planos: o pensamento como heterogênese.” .
Termo do latim que pode ser entendido aqui como: por isso mesmo, portanto, logo ou enquanto.




Uma tal professorarteira a dançar entre a arte, a filosofia e outras coisas e que aqui, nos encontros com estudantes surdos, com estudantes ditos com deficiência, propõe-nos perguntas:
É possível pensar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a vida como uma obra de arte?
Pois reverberam em nós certas palavras de Foucault: “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?”
Como estudantes surdos e pessoas chamadas com deficiência na escola se produzem, se inventam em sua corporeidade e se trans(de)formam a despeito dos padrões de normalidade que organizam majoritariamente nossa sociedade?
O que seriam os tais processos de estetização da vida?
Como se forjam processos de singularização que produzem a vida de outros modos nas fugas ao que está posto para os corpos ditos deficientes?
Poderíamos pensar o dançar, o gaguejar e o rabiscar como gestos possíveis a produzir devires no espaço escolar com estudantes surdos, criando fissuras e inventando a vida?
Em alguma medida o dançar, o rabiscar e o gaguejar com os corpos em sua potência nos dá elementos para problematizar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. uma como uma obra de arte?


Pode ser que nada aqui haja de extraordinário, seja coisa escrita ou rabiscada. Contudo, esses mesmos rabiscos me trans(de)formaram extraordinariamente. E aqui só posso fazer o esforço de trazer alguns lampejos dessas experiências trans(de)formativas. Quem sabe juntar com experiências outras, entre outros, para quem sabe continuar extraordinariamente a me trans(de)formar.


Gestos, uma lista


Eles chegam em bando, suados, eufóricos, puxam, empurram, gargalham e se provocam. No pátio, um sinal luminoso juntamente com o sonoro é acionado e, aglomerados, eles deixam (não de todo) seu momentorecreio e sobem para a sala de aula. Na porta da sala, mãos agitadas movem-se para todos os lados. Alexandre vem correndo, seus pés parecem quicar! Aproxima-se da professorarteira e de mim. Entusiasmado, comenta conosco algo que conversava com seus colegas. Ambas sorrimos.
A professorarteira levanta o polegar mais afirmativo que se possa conceber. Ele nos olha, seus olhos brilham... Eu não tinha entendido um só sinalpalavra! Constrangida, insegura com a língua, deixo-me copiar o outro, e, como professorarteira, aceno positivamente. Alexandre, sorrindo, se afasta, acompanha os colegas até o fundo da sala e continuam a conversar em suas carteiras.
Entre os dentes, pergunto à professorarteira: “- O que ele disse mesmo?” (minha necessidade de comPREeNDER grita alto!). A professorarteira olha para mim e sorri: “- Não sei, alguma coisa que inventou em casa. Às vezes, eu também não entendo, fique tranquila (meus pensamentos quase palpáveis). A maioria deles vêm de famílias ouvintes e muitos chegam no Ensino Fundamental sem ter passado por escola ou sem ter tido contato com surdos em outros espaços. Em casa, eles criam seus sinais para conversar com seus pais e irmãos. Quando chegam aqui, eles trazem isso com eles e nessa cacofonia de línguas, conVERSAM.”
(...)
Alexandre, um nômade em sua língua, escapando pelo tempo livre da escola de seus enraizamentos…
Crônicas de Rabiscos
Menino-nômade





Entender,
v. transitivo direto. Perceber ou reter pela inteligência; compreender; captar; capturar.

Não entender o outro causa angústia. O sentimento de angústia faz parte do estar em relação com o outro. Mas o não entender provoca que tipo de angústia? Angústia causada pelo desejo de compreender e explicar, gestos que podem proporcionar alguma auto-satisfação, harmonia e conforto diante do mesmo? Angústia causada pelo desejo de sustentar o incômodo para que o outro não seja capturado pelo raciocínio instrumental, mas que, em alguma medida, permaneça como desconhecido? Possa ser outro e não apenas o mesmo? Um outro outro? "Hablar con desconocidos significa no saber el mundo de antemano, no conocerlo jamás, [...] Un desconocido trae una voz nueva, una irrupción que puede cambiar el pulso de la tierra, un gesto que nos hace torcer lo ya sabido, una palabra antes ignorada.”
Ó pedagogia que tudo explica, classifica e esmiúça! Obcecada que é por colonizar os corpos ao “impor somente uma possibilidade de língua, de aprendizagem, de inteligência, de corpo” . Ao sustentar que todo desvio necessita ser explicado, expõe sua própria incapacidade.
Não explicarás. A primeira lição do conhecido mestre, aquele ignorante: “a explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só.” A explicação constrói a incapacidade do outro e a incapacidade do outro permite o nascimento de seu explicador... Coloniza o outro, torna-o mesmidade.
Destacamos, mais acima, a palavra entender. Talvez a palavra entender já esteja muito gasta para dizer do que queremos dizer. “Outro (autre se refere a todo o outro, em termos gerais; autri, por outro lado, poderia se traduzir pelo "próximo", a outra pessoa) existe o próximo – esse que não sou eu, esse que é diferente de mim, mas que posso compreender, ver e assimilar – e também o outro radical, (in)assimilável, incompreensível e inclusive impensável”.
A professorarteira, cuida que ao narrar, quando diz ‘não entendo algo’ esse dizer não carregue o sentido de que algo deva ser apenas traduzido e explicado e assim satisfazer a arrogância de um ser sabedor de tudo e do outro. Cuida no esforço por se relacionar com o outro radical, (in)assimilável, incompreensível, impensável. Pois o outro é sempre exterioridade(...) alguma coisa que eu não sou, que nós não somos .


Desentender
, um gesto que cato e guardo.



(2019, antes da pandemia)


Miguel, uma criança autista.
Ele ama comer, mas ama muito, um muito que assustou a todos quando o conhecemos. Miguel busca colocar toda comida que puder com a ajuda das mãos na boca. Um dia de manhã, sua mãe contou que antes que ela conseguisse impedir, Miguel subiu na cadeira e comeu direto das panelas do fogão.
Na escola, sua professora tem buscado estabelecer uma rotina com Miguel. A refeição é uma das primeiras coisas que fazem juntos e é o meio pelo qual conseguem ir produzindo encontros. Ele já entendeu que para isso precisa sentar na cadeira em frente à mesinha branca e esperar pela comida.
Mas Miguel come com as mãos!
A professora sabe que precisa ensiná-lo a usar a colher como as demais crianças. E imagina o quanto Miguel precisa da escola para aprender coisas básicas. Criaram juntos uma estratégia: enquanto Miguel segura a colher com a mão direita, sua professora toma sua mão esquerda nas dela e faz carinhos tentando distraí-lo, às vezes ele puxa, mas ela volta a brincar com seus dedos enquanto cantarola. Quando resta pouca comida no prato, ele puxa a mão para empurrar a comida na colher, nessa hora a professora o ajuda, organizando a comida na colher para que ele consiga levar à boca até o último grão de arroz.
A irrupção do outro


(2020, em pandemia)


Agora, Miguel e sua professora estão distantes, os encontros se fazem pela tela do celular… Sua mãe, em uma conversa descontraída, enviou alguns vídeos dele, disse que Miguel está muito crescido e que aprendeu muitas coisas. Em um dos vídeos, Miguel, após a terapia, aparece sentado à mesa de um restaurante comendo com garfo e faca. Com muito interesse e habilidade, ele empurra a comida com a faca e leva o garfo à boca. Com uma tranquilidade e uma cadência hipnotizantes…
É como um soco no estômago.
(Crônicas de Rabiscos)




Por que fazemos tudo igual? Por que ensinamos as mesmas coisas e dos mesmos modos? Por que caímos na armadilha de nos achar sabedores de tudo e damos as diferenças como dadas? Por que aprendemos receitas, inventamos receitas e passamos à frente receitas que continuam não cabendo nos corpos outros?


...entre
os que estavam aí
(os mesmos),
os recém-chegados
e os outros....
No mundo moderno, impera o corpo do trabalho, o corpo útil e, no suposto desvio, produz-se o corpo doente, anormal e d(não)eficiente. Desde Comenius nos vemos aficionados na tarefa de ensinar tudo a todos no esforço de que todos, em um só tempo, possam aprender o que é ensinado ... o grande ideal moderno de constituição de identidades únicas e universais, representação do UNO que nunca coube em nossa cabeça – sempre entendida como entidade separada do corpo – que nos assombra e nos deixa permanentemente em crise.
Veiga-Neto e Corcini Lopes (2012) discutem que a educação pode ser entendida como um conjunto de procedimentos nos quais os outros, enquanto “recém chegados, os estrangeiros, as crianças, os que não estavam aí, os anormais etc., são trazidos para o interior de um grupo que já estava aí.”


Entre os que já estavam aí colocam os professores que atuam, entre outros, como responsáveis por trazer os outros o mais próximo possível para sua morada, seu domínio, através do que eles denominaram rebatimento. Os que não estavam aí sofrem a força do rebatimento a fim de que “aqueles que se situam num plano, fossem rebatidos para o plano onde já se situavam os mesmos (...) um notável esforço no sentido de encaixar, o mais ajustadamente possível, todos os recém-chegados” segundo determinados saberes, práticas, classificações e padrões estabelecidos por aqueles que já estavam aí.
Veiga e Corcini Lopes (2012) identificam ainda, nas políticas de inclusão atuais (sem esgotá-las), três formas de dominação: o poder, a violência e a tutela, sendo o poder “uma ação sobre ações (e não sobre coisas)”, a violência, “uma ação sobre um corpo, sobre as coisas” e a tutela, a mais presente nas políticas de inclusão, um modo de “proteção de uns sobre outros, considerados mais frágeis e
ainda incapazes de decidirem sobre suas próprias vidas.” Na tutela, há uma racionalidade envolvida, contudo, os tutelados não participam das razões de sua tutela, nem se espera que a conheçam, apenas sofrem sua ação, seu rebatimento.
O tutelado é tematizado, fala-se sobre e não com, planeja-se para e não a partir de suas demandas, suprime-se o falar por si ou entre si, “alienado(s) ao desejo e aos cuidados daquele reconhecido como sendo capaz de decidir sobre sua vida, se submete às decisões e ao domínio” . Algo que Skliar problematiza nas políticas de educação, de educação inclusiva e de educação especial como “obsessão pelo outro”, que transforma o outro em um outro específico, nominado, localizável, fixado em determinada identidade e modo de ser. Uma obsessão por transformar o outro em o mesmo, ainda que nunca se consiga alcançar tal façanha. Uma obsessão por traduzir o outro e inventá-lo, para então dominar, conter, tutelar, localizando-se em uma trama discursiva que fabrica os recém-chegados “ora como um anormal a ser contido, ora como um anormal a ser conduzido e ora como um anormal a ser tutelado”, sendo que a tutela “não reconhece desejo e, tampouco, capacidade de autonomia moral do outro.”
Existe um processo civilizatório em curso, processo pelo qual produz-se realidades, escolhendo certas realidades e não outras. Ao estar na escola, esses processos agem sobre as singularidades ali presentes.
Retomando o encontro com Miguel e sua professora, não queremos aqui dizer que a escola não deva se preocupar com o modo como Miguel come, ou com ensiná-lo a comer, com quais talheres, e etc. O que estamos tentando problematizar aqui é: de que modo fazemos o que fazemos? Quais as implicações do que fazemos na vida do outro? Buscamos compreender, ao menos em parte, o funcionamento desse processo do qual, como educadores, fazemos parte, não ingenuamente, nem por obrigação, mas como engrenagem de um dispositivo.
No caso do Miguel, por exemplo, simplesmente não se deve ter como fato consumado que a crianças pequenas deve-se oferecer como talher apenas a colher. E por que não garfo e faca? E por que não outros? E por que não a mão? E por que não em outros tempos?
Como professores, parte de uma grande máquina que se convencionou chamar escola, somos também nós engrenagem, alternando ora entre os administradores, gestores e mantenedores das regras, ora escapando às linhas molares, ora corpos nômades nos quais crescem várias linhas ainda estruturadas, linhas duras, molares, ora corpos-árvores explodindo em hastes por todos os lados.
Nosso amigo Skliar, move-nos ao perguntar “e se o outro não estivesse aí?" Move-nos a pensar a respeito da escola enquanto instituição totalizadora, para todos, na qual todos devem ser incluídos. Instituição “que tudo deseja apoderar-se, que tudo deseja conter e incluir, que não suporta as ausências, os esquecimentos, as ambivalências, e que repousa satisfeita ao fechar suas portas por dentro” . A escola como um dos lugares de produção da mesmidade. A mesmidade como uma ação que proíbe e elimina a diferença. “Porque sem o outro não seríamos nada porque a mesmidade não seria mais do que um egoísmo apenas travestido. Porque se o outro não estivesse aí, só ficaria a vacuidade e a opacidade de nós mesmos, a nossa pura miséria, a própria selvageria que nem ao menos é exótica. Porque o outro já não está aí, senão aqui e em todas as partes; inclusive onde nossa pétrea mesmidade não alcança ver.”
“Pero la discapacidad no es su resultado sino, quizá, aquello que comienza cuando esa mirada ya no pueda ver, de tanto crer que y alo visto todo.” Um olhar acostumado, sabedor de todas as coisas: naturaliza, não conversa, não encontra e torna o outro d(não)eficiente.
No encontro com Miguel, a professorarteira senta no chão e repensa. Desaprende os próprios sabimentos e deixa aprender.
“Deixar aprender não é um nada fazer, senão que é um fazer muito mais difícil e muito mais exigente do que ensinar o que já se sabe. É um fazer que requer humildade e silêncio. Mas que também exige audácia e falar alto, porque para deixar aprender tem-se de eliminar muitos obstáculos. Entre eles, a arrogância daqueles que sabem.”
Deslocamento.
O corpo dói.
Mais certezas se desfazem.
O corpo deforma, o outro o transforma e ensina a desaprender.


Desaprender
, um gesto que cato e guardo.

Deixar aprender
, outro gesto que cato e guardo.




O fantasma da Inclusão (de surdos)


Há quem diga que o Congresso de Milão ficou pra trás, que o oralismo ficou para trás... Mas volta e meia ele se se disfarça a cada avanço da medicina, a cada novo programa, a cada novo texto oficial...
No Ensino Médio, lembro-me de alguns dos professores que, ao saírem de determinadas turmas, comentavam que os surdos não estavam preparados como os outros estudantes, não aprendiam as matérias, não entendiam os problemas de Matemática, não sabiam escrever direito, não acompanhavam os conteúdos.
- Eles não conseguem aprender! O que eu vou ensinar para eles? Ah, Inclusão! Vou passá-los com nota seis porque tenho que passar, mas, na verdade, há dois anos tento ensinar a mesma coisa e eles não aprendem.
Algo que também me lembro é que esse professor, especificamente, utilizava como recursos explicativos para os conteúdos de Matemática, apenas a fala, o quadro e o giz.
(...)
Houve um tempo (de novo, outra vez) em que certas coisas ficaram interditadas. Pois que a escola devia ser Uma Só e Inclusiva. Assim, as coisas precisavam seguir determinada ordem e acontecerem em um mesmo momento, sob um mesmo panóptico. Se não??? Arriscava o controle! Afinal é um prédio enorme com mais de mil alunos, correndo para lá e para cá. Não se podia ter duas escolas dentro de uma (como se já não fossem várias). Não é bom haver separação: classes bilíngues X escola regular. SOMOS UMA ESCOLA SÓ! Aqui É TUDO INCLUSÃO!
...E com isso lá se foram as nossas festas...
(Crônicas de Rabiscos de um tempo ainda presente)





Para la mayoría de los oyentes, la sordera representa una pérdida de la comunicación, un prototipo de auto-exclusión, de soledad, de silencio, oscuridad y aislamiento. En nombre de ese estigma se practicaron y se practican las más inconcebibles formas de control de sus cuerpos y mentes: entre los más significativos, la violenta obsesión para hacerlos hablar; la tendencia a preparar a esos sujetos como mano de obra barata; la experimentación biónica en sus cerebros; la formación paramédica y pseudo-religiosa de los profesores; la prohibición de su lengua -la lengua de señas- y su persecusión y vigilancia por todos los rincones de la mayoría de las instituciones especiales; el desmembramiento comunitario entre los niños y los adultos sordos.



Inclusão.
Há tantas coisas dentro dessa palavra... “A inclusão “é”, ao fim e ao cabo, o que fizermos dela, o que fizermos com ela. Não ‘é’ em si mesma, nem por si mesma, nem a partir de si mesma, e nem mesmo por própria definição.” . Sem a pretensão de esgotar qualquer discussão a respeito dos sentidos da inclusão, ou compreendendo a inclusão como uma invariante ao longo da história, cremos ser importante nos demorarmos um pouco mais nessa palavra, catando alguns fragmentos e rabiscando pensamentos. Essa nos é uma palavra cara e provocadora. Não pretendemos aqui levantar qualquer bandeira contra ou a favor da inclusão, nenhum discurso plebiscitário de condenação, ou de salvação. Esforçamo-nos por escapar aos binarismos que buscam explicar tudo de forma rápida e simples. Vivemos uma realidade extremamente complexa, somos parte da engrenagem. A questão que se nos coloca é: como fazemos, o que fazemos e para quê?
A Inclusão tem representado uma política recente em nosso país que busca prover as condições para o atendimento do princípio universal de “Educação para todos”, desde Jontiem (Tailândia), no ano de 1990 e a Declaração de Salamanca (1994). As lutas e movimentos sociais em nosso país têm um papel muito importante e, nas últimas décadas, impulsionaram a formulação de todo um arcabouço legal ainda recente em nossa história. Temos alcançado conquistas que continuamos defendendo com veemência, pois vez por outra as vemos ameaçadas : a ideia de que os estudantes têm direito a estudar todos juntos na escola regular, independente de gênero, etnia, deficiência, classe social, ou outros; a compreensão de que as escolas especiais e classes especiais são formas de exclusão e discriminação; e a abertura inegociável das portas da escola para todas as crianças sem discriminação.
Em Niterói, vivemos uma experiência de abertura das portas da escola para todos desde o início dos anos 2000, onde se deram nossas primeiras experiências de inclusão . Em 2004, tem início o projeto de educação bilíngue-bicultural de surdos , tendo a Libras como primeira língua e língua de instrução, compondo classes bilíngues com professores bilíngues, uma busca constante pela presença do professor surdo como referencial linguístico, e uma série de produção de materiais, discussões e formações nesse sentido. Contudo, não é um projeto com uma trajetória linear e harmônica. A cada nova mudança de governo, a cada troca de gestão, a cada programa comprado e adotado pelo município é necessário lutar e reafirmar nossas escolhas. Diariamente, lutamos pelo atendimento das demandas linguísticas dos nossos estudantes, pela educação bilíngue-bicultural dos surdos em nosso município. Há uma disputa de concepções sobre a surdez e a educação de surdos que se fazem a cada dia, em cada recurso destinado, em cada recurso perdido, a cada momento em que pessoas “desavisadas” aligeiradamente buscam impor suas “bem intencionadas” propostas inclusivas sem se dar ao trabalho de compreender as diferenças que nos compõem.
Existem diferentes narrativas a respeito da inclusão, muitas falam em nome dos direitos humanos, da cidadania, ornadas com uma linguagem politicamente correta de que todas as pessoas ditas deficientes deveriam ser incluídas e/ou integradas , sem parar para pensar sobre os efeitos que essa inclusão totalizadora tem para determinados grupos e singularidades, adotando a inclusão como um grande guarda-chuva que contém e controla corpos múltiplos: surdos, autistas, indígenas, negros, mulheres, cegos, e etc. “Muitos responsáveis pelo planejamento e pela implementação das políticas públicas não conseguem distinguir minimamente as diferenças entre uns e outros, de modo que impõem os mesmos critérios e as mesmas técnicas de rebatimento sobre toda e qualquer diferença que encontram pela frente.” . Em um contexto que argumentos que busquem pensar a inclusão de outros modos são “rápidamente censurado(s), considerado(s) políticamente incorrecto(s), a favor del segregacionismo y de la formación de guetos.”
Por exemplo na fala de um recente Ministro da Educação que entre outras coisas afirmou que: “estudantes com deficiência atrapalham o aprendizado de outros alunos”. Ou no decreto decrépito de 2020 publicado em 30 de setembro de 2020, (Dec. 10.502/2020), nele o (des)Governo Federal instituiu a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” com o objetivo de substituir a política anterior de 2008 (PNEEPEI, 2008). O referido Decreto, teve seus efeitos suspensos pelo Superior Tribunal Federal em dezembro do mesmo ano. Contudo, ele faz parte de todo um contexto político recente que promete inovação, mas que recebe uma série de críticas da comunidade científica e dos movimentos sociais de luta pela Inclusão, por significar um grande risco de retrocesso em relação às conquistas alcançadas na luta pela Inclusão nos últimos anos. A respeito das discussões em torno da política trazemos como sugestão a live promovida pelo GT15 da ANPEd “O processo de desmonte da Educação Especial em meio à pandemia”, no dia 22 de outubro de 2020.
Os discursos de inclusão, por trás das bandeiras de igualdade e justiça, frequentemente estão impregnados de estereótipos semelhantes aos das classes especiais, e intimamente ligados a um discurso de eficácia e eficiência do mercado como sinônimo de qualidade na educação. As políticas de inclusão que tudo contém, abarcam e controlam servem cada vez mais à correção dos corpos, à produção de normalidades e à produção do mesmo.



Hoje Carlos chegou sorrindo, seu corpo projetado para frente, para cima. Sua postura era outra. Assim que chegou, pegou seu material e começou a trabalhar...
A professorarteira pega algumas folhas e se põe a postos para orientá-los no processo.
Começam a produção.
Outra professorarteira, que atua como referencial linguístico, intervém. Explica em Libras de formas diferentes, criando outros classificadores , atua, expressa-se intensamente, utiliza referências outras, compreendendo aspectos da visualidade dos surdos de muitos outros modos.
As crianças montam as sequências das histórias com desenhos. Em seguida, embaixo de cada imagem, escrevem a narrativa em português, as professoras ajudam na escrita.
De um lado, uma professorarteira chama a outra, pede que veja a produção escrita de um estudante que estava com ela: “- Está escrito certo? Ajuda-me?”.
De outro lado, Gustavo bate o lápis na mesa chamando a professorarteira: “- Acabei.” Ela passa o olho rápido.
Ao meio, Amanda pega sua folha, separa seus lápis coloridos. Corpo compenetrado em seu desenhar. Abaixo dos espaços, para o desenho, há linhas para escrita. Mas Amanda, nas linhas, escreve termos em inglês comuns das redes sociais e uma variedade de emoticons e emogis como legenda de sua história.
Mais ao fundo na sala, inquieto, Carlos olhava o tempo todo para a professorarteira, parecia querer chamar sua atenção. Efusivamente todos continuam as atividades coletivas da oficina, um sinalatório só!
Mais uns minutos...
A professorarteira enfim caminha até Carlos, abaixa, aproxima o rosto e pergunta sobre a atividade. Carlos ignora solenemente a pergunta, abre um sorriso gigante e diz:
- Hoje é meu aniversário!
(Crônicas Rabiscadas de estarjuntos)
Classificadores são formas de estabelecer concordância em uma língua.
Na Libras os classificadores são formas representadas por configurações de mãos que funcionam como marcadores de concordância em relação à coisa, pessoa ou animal. São muito importantes, pois ajudam construir a estrutura sintática em relação à coisa, pessoa ou animal, através de recursos corporais que permitem relações gramaticais abstratas. Com função descritiva, por exemplo, podem “detalhar som, tamanho, textura, paladar, tato, cheiro, formas em geral de objetos inanimados e seres animados”. (Pimenta e Quadros, p.71, 2006).





Como pode um corpo d(não)eficiente caber aí?
Como expomos, Veiga-Neto e Corcini Lopes (2012) tensionam as atuais políticas e práticas de inclusão como dispositivos envolvidos numa operação de dominação do outro sobre o mesmo a serviço do neoliberalismo. Políticas de inclusão que atuam como ações poderosas e de tutela do outro, de rebatimento dos outros a um mesmo plano comum daqueles que já estavam aí, os mesmos. Os autores discutem a inclusão dentro do ideal moderno de produção de identidades universais como: “um conjunto de saberes e normas às quais todos devem obedecer” ou deveriam, produzindo assim os desvios que apontam novamente para a norma; e ainda, a inclusão como “uma tecnologia definidora dos sujeitos, isso é, como uma fonte capaz de dizer (ou representar) quem se é, quem é o quê —incluído, em processo de inclusão, excluído etc.” na qual o anormal deve ser conduzido e tutelado, sem nem precisar se dar conta de que está sendo conduzido e tutelado.
Na educação bilíngue de surdos, vive-se em constante tensão com a palavra Inclusão. Os surdos compõem um grupo linguístico minoritário. Sua língua gesto-espaço-visual se produz de modos diferentes das línguas de modalidade oral, é ela que permite que os surdos falem entre si e lhes proporciona autonomia para falar de si mesmos aos outros. Sua língua compõe seus modos de ser, estar e aprender no mundo. Sem ela, resta a oralização e a leitura labial com as quais os surdos podem se comunicar com os ouvintes, mas não entre eles mesmos, nem por eles mesmos.
Aos reclames da inclusão dos surdos, somam-se os avanços da medicina com novas técnicas de oralização e correção da surdez com aparelhos auditivos modernos e implantes cocleares, uma alternativa cara, com acesso limitado, que demanda um acompanhamento caro e longo para acomodação do corpo à tecnologia. Além disso, uma alternativa que não serve indiscriminadamente a qualquer surdo, com reverberações complexas para o corpo que se submete e dentro dos próprios grupos surdos. Os discursos do oralismo sobre o corpo surdo ainda se fazem presentes e permeiam as falas, os pensamentos e ações, os ditos e os não ditos... O oralismo, em nossa história, não é passado e volta munido de mais força ainda a cada novo avanço tecnológico, e se reafirma nos discursos politicamente corretos de inclusão, sem pensar quais os efeitos desta para as especificidades linguísticas e culturais dos surdos.
Nos grupos surdos, existe ainda uma grande defesa de que é a educação bilíngue-bicultural de surdos que encarnaria uma experiência real de inclusão e que “juntar alunos surdos com alunos ouvintes numa sala de aula com metodologias educativas ouvintistas é uma ‘pseudoinclusão’” , se traduzindo em dolorosas experiências de exclusão, solidão e deficiência . Ressoa a defesa de que apenas o convívio com seus pares e a fabricação de saberes e modos de ser e existir, que permeiam a produção da língua, atendem às necessidades linguísticas dos surdos, expressam o empoderamento dos surdos, promovendo o acesso e produção de cultura, conhecimento, informação dentro e fora dos grupos surdos, possibilitando intercâmbio entre grupos, possibilitando a produção de projetos pedagógicos pelos surdos e a participação no debate educativo. Ser bilíngue ultrapassa a comunicação em duas línguas, mas está ligado às questões culturais, às concepções político-pedagógicas e à simples ideia do “direito dos sujeitos que possuem uma língua minoritária de serem educados nessa língua” . A educação bilíngue é, ao mesmo tempo, um ponto de partida e um ponto de chegada para os surdos. Um reflexo coerente – talvez o primeiro da história – a reconhecer e valorizar a situação sociolinguística dos surdos.




Incluir .... Estar Juntos
, Gestos que cato, risco, mas ainda guardo.

Os ‘sem língua’

A professorarteira, com sua saia rodada, ama estar no meio de crianças pequenas. Contudo entre os surdos sempre chegou em um tempo depois, já no que tradicionalmente se considera puberdade e adolescência. Momento em que os surdos já estão há algum tempo na escola, convivendo com outros surdos e com a Libras. Tempo em que a maior parte das conversas versam em Libras, com sinais.
Este ano, ela se viu diante de um desafio novo: oficinar com todos os estudantes surdos, inclusive os recém-chegados: surdos do 1º e 2º anos.
“- Mas eles não têm língua!” Dizem... (e dentro de si ela também grita).
Eles correm, escorregam, derrapam, vibram, gritam, giram, pulam a todo, todo, todo instante! E brigam. E como brigam! Em um instante está tudo bem e um segundo depois, caos! Dois ou três se embolam no chão sem que nenhum adulto consiga acompanhar ou entender o que aconteceu.

(Mas não é assim também com outras crianças?)
A professorarteira não entendia uma vírgula do que as crianças falavam entre si. Pois sim, eles falavam, e muito! Com sinais? Com palavras? Pelos poros.
Falavam pelos poros e através de cada partezinha de seus corpos em movimento.
Sem ter muito para onde fugir, lá estavam em uma mesma sala as crianças e a professora acompanhada de seus medos e inseguranças. O que iam fazer juntos? O que eles gostam de fazer? O que eles mais fazem? Esta seria a pista para o início dos encontros entre esses corpos que não falavam a mesma língua:BRINCAR!
Apenas brincar.

Brincar de correr, de pular, brincar com o corpo expandido, estendido, esgarçado...
Nas oficinas, a professorarteira continuou não entendendo metade do que as crianças falavam entre si. Contudo, brincando entre elas, seus corpos conversavam.
... Sentidos que se produzem quando corpos sem uma língua em comum se enlaçam, entrelaçam e produzem outra coisa, uma língua para conversação.
(Crônicas de rabiscos)



O que pode significar/ter significado estar aí?
O que pode significar/ter significado permanecer junto a ele?
O que pode significar/ter significado fazer coisas juntos?
Carlos Skliar
Com perguntas que nos provocam, nosso amigo Skliar nos apresenta algo como três dimensões do estar juntos: estar aí, permanecer junto e fazer coisas juntos.
A escola, hoje, em especial a pública, tem sido um dos lugares em que se permite a entrada de tantos desconhecidos, daqueles que não estavam aí – muitos ainda estão fora dela... é verdade, mas muitas camadas, historicamente excluídas, têm tido sua entrada nela ao serem incluídos, através de políticas públicas e investimentos feitos no período democrático recente de nosso país.
Entrar nem sempre é estar juntos.
Mas esse espaço, a escola, torna-se, também, um pouco daquilo que fazemos dela...
Skliar afirma o estar juntos como ponto de partida para fazer coisas juntos. Estar juntos “es estar en el afecto, es afectar y ser afectado; supone sobre todo la dificultad en pensar una conversación al interior de las escuelas que, como tal, nos plantea dudas, titubeos, controversias, malestares, una especie de choque entre lo común y lo singular, la normalidad y lo otro. En fin, “estar juntos” es un punto de partida para “hacer cosas juntos”, lo que no supone las mismas acciones, ni una identidad o consenso entre puntos de vista, ni equivalencia en sus efectos pedagógicos.”
Talvez possamos pensar a inclusão como um “estar aí”, dos recém chegados, daqueles que não estavam e que não podiam estar aí. Um primeiro gesto. Um gesto que nos faz “permanecer juntos”.
Mas como permanecemos juntos? E para quê?
“não se trata apenas de proclamar políticas de acesso universal às instituições, quanto à entrada irrestrita de todas as pessoas com deficiência nas escolas, mas também, e no mesmo ato, criar um pensamento e uma sensibilidade relacionados ao que significa estar juntos, o “para que” desse estar juntos, qual o conceito desse estar juntos.
(...) Não acredito que primeiro seja necessário “incluir” e depois pensar do que se trata o “habitar e o estar juntos na escola”.
(...) a afirmação “devemos estar todos juntos” foi imperiosamente destacada, mas ao mesmo tempo a pergunta “para quê e como é este estar juntos?”
Estar aí.
Estar (permanecer) juntos.
Qual a altura do estar juntos? A professorarteira responderia: ‘- Sentados no chão, dançando com as mãos’... Mas, há riscos. A altura da relação carrega muitos perigos. Estar juntos não é tranquilo e confortável, é "un embate de lo inesperado sobre lo esperado, de la fricción sobre la quietud, la existencia del otro en la presencia del uno"
Penso que estar juntos não pode ser outra coisa que não seja um gesto, um primeiro gesto. Podemos, quem sabe, talvez, com linhas e retalhos, ir tecendo por pequenos gestos, por gestos mínimos o junto que queremos.
“Un gesto. Un gesto mínimo. Un acontecimiento que irrumpe y provoca experiencia. El gesto, su presencia, viene antes... antes de cualquier reforma en las leyes, de cualquier propuesta didáctica, de cualquier adaptación de la currícula, de cualquier proyecto político pedagógico. El gesto antecede estos movimientos: es una composición y un pasaje entre todos ellos.”
Estar aí, permanecer juntos e fazer coisas juntos, produzindo com estudantes surdos uma forma de educação que lhes toque o viver, que nos dê pistas para fabricação de uma vida bela, quem sabe inventando vida de outros modos, produzindo a própria existência como uma obra de arte.



Em que língua?
Em nosso Coletivo , de modo constante e em diferentes situações, reverberamos a pergunta de Larrosa: Em que língua? Parece que essa pergunta colou em nós. Nos encontros com os estudantes, em nossas pesquisasescritas volta e meia nos deparamos com ela.
É possível uma língua produzida com corpos que se enlaçam? É possível profanar tanto assim os ditames da língua e ainda assim chamar isso que fazemos entre nós de língua? De con-Versa? Porém, esta pergunta não nos leva a respondê-la, leva-nos a continuar reverberando a pergunta: Em que língua?
Quem sabe ensaiar uma língua que suporte a experiência, quem sabe uma língua que não é minha, nem sua, mas que se produz entre nós? Quem sabe uma língua para conversação, pois “só tem sentido falar e escutar, ler e escrever, em uma língua que possamos chamar de nossa, ou seja, em uma língua que não seja independente de quem a diga, que diga algo a você e a mim, que esteja entre nós”.


Em que língua?
Talvez aquela que nos permita brincar?

Brincar
, gesto que cato e guardo.

E, de tateios em tateios, suportar que nem tudo possa ser compreendido, nem tudo deva ser compreendido, que o mistério faz parte da incrível experiência do encontro com o outro, inassimilável pelo mesmo e assim ir forjando por balbucios uma tal linguagem para conversação “para ver até que ponto ainda somos capazes de nos falarmos, de colocar em comum o que pensamos ou o que nos faz pensar, de elaborar com outros sentidos ou a ausência de sentido do que nos acontece, de tratar de dizer o que ainda não sabemos dizer e de tratar de escutar o que ainda não compreendemos (...) em uma língua que não seja independente de quem a diga, que diga algo a você e a mim, que esteja entre nós”.

Funk dos menorzin



Hoje é dia de Festa! As professoras e os funcionários correm de um lado para o outro para arrumar tudo a tempo. Mas a festa é com todas as turmas, todas as crianças de três a cinco anos juntas.
Quem ficará com elas enquanto arrumamos tudo?
- Podem arrumar, deixem as crianças comigo! Tragam a caixa de som. Vou pegar farinha na cozinha.
(Respondeu, a professorarteira e como hoje vestia sua saia rodada, se sentia poderosa e mágica. Em cada aba de sua saia um feitiço.)
...e assim a festa começou antes de seu início.
Sentindo-se o próprio Flautista de Hamelin, reuniu as crianças em torno da caixa de som e começaram suas brincadeiras musicais. De uma aba da saia, sacava uma varinha mágica, da outra, um pó mágico, e soprava farinha de trigo sobre crianças que viravam cobras, minhocas, lagartos e sapos.
O melhor ela reservou para o final (da festa que antecedia à Festa).
Ela costumava circular pelas turmas, e sabia exatamente os hits que as crianças gostavam e dançavam. Volta e meia escapulia para a turma de outra professorarteira para dançarem juntas com as crianças.
Então...
Atenção crianças!
5, 4, 3, 2, 1:
FUNK DOS MENORZIN!
De um lado a outro, as crianças dançavam: “ombrinho, ombrinho, palminha, palminha...”; “desenrola, bate e...”; “Acorda Pedrinho...”; “Tu é cria de onde?...”; “é mentira da barata...” e até “Onda, onda, olha a onda...”.
Mas entre os adultos, correndo de um lado a outro para garantir que tudo ficasse perfeito para a festa, aproximaram-se do pátio os Gestores da Ordem e da Moral, e gritando:
- “Absurdo! Isso não é música de criança! Isso não pode na escola! Não dá para tocar funk, independente da letra, pois leva as crianças a rebolarem! E os pais das crianças? Tsc, tsc, tsc, eles não vão gostar nada disso! E as famílias evangélicas? Temos que respeitar a crença dos nossos alunos! E... blá, blá, blá...
...
Parênteses:(Estico o olho e vejo uma funcionária da escola, que é professora de escola dominical em uma igreja, filmando a filha de 3 anos que dançava entre os amiguinhos...)
...
Outros parênteses:(Talvez alguém ao ler a palavra “gestor” pense logo na direção da escola. Não. Pois somos nós, cada um de nós gestores e administradores da máquina chamada escola. A direção, nesse caso, corria para lá e para cá, forjando intervalos em que dançava até o chão, junto com as crianças).
...
Mas os gritos dos Gestores continuavam e sobrepujaram a música e anunciaram seu fim.
...
Paixão triste.
...
A professorarteira murchou, a mágica foi embora, a varinha quebrou e o pó foi soprado. Tentou argumentar, mas não teve força... As crianças paralisaram, seus olhos correndo de um lado a outro sem entender.
Logo, as crianças dispersaram.
...
Com sua saia sem mágica, a professorarteira sentou-se no chão ao lado da caixa de som.
Logo viu as crianças correndo, brincando, rindo
e dançando...
Recomeçou ela também a dançar, dentro de si, murmurando desobediente, bruxa, feiticeira, velha e louca.
(Crônicas de rabiscos)





Nem vem tirar meu riso frouxo com algum conselho
Que hoje eu passei batom vermelho
Eu tenho tido a alegria como dom
Em cada canto eu vejo o lado bom
Pode falar que eu nem ligo
Agora eu sigo o meu nariz
Respiro fundo e canto
Mesmo que um tanto rouca
Pode falar, não me importa
O que tenho de torta, eu tenho de feliz
Eu vou cambaleando
De perna bamba e solta
(Velha e louca, Malu Magalhães)


Dançar
, gesto preferido.
Sacola de gestos





Gestos
, uma sacola cheia deles.
Mas para quê? Por que afirmar o gesto desde a escola? Desde o encontro com o outro? Desde o encontro com corpos ditos com deficiência?


Agamben, ao tratar sobre cinema em um de seus textos, afirma que o elemento central do cinema, ao contrário do que se acreditava, não é a imagem, mas sim o gesto, pois “o cinema reconduz as imagens para a pátria do gesto” transbordando a esfera da estética, compondo-se como uma arte ao mesmo tempo estética, política e ética.
Nesse texto , Agamben traz para nós importantes elementos para pensar o gesto. O gesto não como uma ação, algo que se faz ou reproduz, mas algo que se “assume e suporta”. Como um ethos, rompendo a esfera do fazer, e os fins e os meios. O gesto não seria um meio em vista de um fim ou mesmo um fim sem meios. O gesto apenas “torna visível um meio como tal” algo em suspensão, medialidade a ser suportada em sua duração, puro meio. Inscreve-se em uma dimensão ética, o gesto é puramente “comunicação de uma comunicabilidade. Este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser na linguagem do homem como pura medialidade” . Não é algo que possa ser dito, explicado. É como uma gagueira, “um mostrar-se daquilo que não pode ser dito” mas suportado, assumido e encarnado.
É assim o gesto dançar, “é somente o suportar e a exibição do caráter medial dos movimentos corporais” . A professorarteira e suas crianças dançam porque dançam, porque algo como uma gagueira indescritível impele seus corpos a fazê-lo, dançam em formas, ou sem forma palpável, até seus pensamentos dançam porque assumem “a transitoriedade e o risco do pensamento perante a segurança que oferece uma visão sistemática do mundo” dançam pelos poros independente de autorizações e de personagens antipáticos (como os Gestores da Ordem e da Moral). Mesmo diante de afectos tristes que buscam diminuir a potência de agir , afectos regidos “por estados doentios de envenenamento do pensamento, cujos intérpretes são incapazes de afirmar a vida porque precisam se sentir superiores a tudo aquilo que foge do controle, pautando sua existência numa moral do dever ser (e não na ética do devir, que só é, sendo)” .
E não se trata de um grande feito, uma rebelião, mas de um gesto pequenino que os faz dançar, devindo cobras e minhocas, e lagartos, e sapos, e bruxas, e feiticeiras, e velha, e louca.... E sua dança se conserva, mesmo que fugaz, dura o quanto dura seu suporte (o próprio corpo em movimento e o ar a rodopiar). Um gesto, sem finalidade, apenas meio, apenas ar ligeiro que move junto com seus gestos. Possui uma existência em si enquanto o gesto dura, e como “sensação poderia conservar-se, sem um material capaz de durar, e, por mais curto que seja o tempo, este tempo é considerado como duração” e se sustenta.
Para Nietzsche , a dança é uma “arte leve” se libertou da asfixia e do peso da moral e suas prescrições, as quais não se deve apenas superar, mas também dançar. Evoquemos a mensagem do espírito pássaro de Zaratustra : a dança como máxima expressão de afirmação de vida, um dizer SIM à vida. Uma ode ao sim!
“Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais um artista, tornou-se obra de arte”







“O gesto abre a esfera do ethos” .
Em nossa sacola de gestos, temos recolhido alguns que forjamos pelo caminho do entre. Trazemos aqui alguns ditos: sentar no chão, desentender, desaprender, deixaraprender, estar juntos, brincar, rabiscar, dançar e outros tantos não ditos.
A fim de dar a ver quem sabe o gesto como efeito político e poético do encontro com o outro, qualquer outro, como agenciamento que nos permite pensar a educação como uma possível relação de alteridade.
Apesar de minha-nossa empolgação e suspeita preferência pelo gesto de dançar (ré confessa), pode-se perceber que os gestos não se encontram entre as grandes palavras e os grandes feitos... Gostaria de tecer aqui um deslocamento, um deslocamento que talvez minore ainda mais a palavra gesto... Para tanto convido mais uma vez nosso amigo Skliar.
Skliar propõe pensar o gesto desde o pequeno, o irrelevante e insignificante. Pensar o encontro com o outro na educação como uma gestualidade mínima, na contramão das linguagens heróicas, salvacionistas que compõem grande parte dos discursos pedagógicos nas políticas educacionais. Gestualidade mínima como linguagem e modo como vamos nos produzindo no encontro o educativo, na contramão dos grandes relatos, eloquentes, exacerbados “abriendo la posibilidad hacia una cierta forma de pensar sobre “eso que pasa”, “eso que nos pasa” en la educación a diario” .
Desde o pequeno “aquello que puede ser confundido com lo intranscendente, com lo fugaz y que, si embargo, resulta decisorio, se vuelve enfático por su tibieza, esclarecedor, em certo modo, cuando se trata de alguien que quiere decir algo de alguien o algo de ‘algo’” .
Isso tem a ver com a passagem do ser-hostil para o ser-hospedado pelo outro, através de gestos simples: saudar, acolher, acompanhar, possibilitar, ceder, conversar, olhar, brincar e ficar quieto, respirar, ser paciente, ficar em silêncio... estar aí, permanecer juntos e fazer coisas juntos. Um estar juntos que não significa um ato de bondade, redenção ou caridade, mas entendido como pura tensão, ato de diferir e negociação de desejos desde o mínimo.
Porque falamos sempre e demais de uma tal Educação para Todos, um gesto grandioso para um Todos abstrato e ideal. Um gesto no qual não parece caber qualQueR um “cualquier niño, cualquier niña, cualquier joven, en fin, cualquier otro, con cualquier cuerpo, cualquier modo de aprender. cualquier posición social, cualquier sexualidade” , em suma, quaLquer qualqueRidade.
A palavra quaLquer e a ideia de qualqueRidade me afetam de um modo singular. Há nela um duplo efeito em mim. Efeito como singularidade, que são singularidades, várias, no sentido deleuziano de “singularidades ‘nômades’, ao mesmo tempo inatribuíveis e não hierarquizadas, constituindo puros acontecimentos” .
Singularização “como o investimento em uma linha de fuga que busca escapar à dupla captura da produção e do mercado, desenhando a possibilidade de um aprendizado que constitua alguma possibilidade de autonomia e de criação” . Como uma linha de fuga aos processos de subjetivação, como uma resistência aos processos de produção em massa de subjetividades, em um movimento de estando dentro produzir fugas e abrir novos fluxos “um estar fora estando dentro”
O segundo efeito é da ordem do sensível, do modo como ouço e sinto a palavra QUALquer em meu corpo: como uma provocação, ao pensar historicamente na educação, as vidas ditas desviantes, deficientes, pobres, negras e analfabetas... essas vidas marginais, ordinárias: quaiSquERes...
.... é que não podemos dizer onde um corpo pode chegar, mas dizemos... é que não
podemos definir o que um corpo é, mas definimos.
Em meu corpo, quaLquER diz daquilo que é achado: dos restos, dos cacos, rabiscos e das sobras miúdas... Daquelas coisas fragmentadas que são catadas pelos cantos, pelas frestas, “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”
Para Agamben , a singularidade é qual-quer, independente das características de sua superfície que identificam sua inclusão em determinado conjunto ou classe: o estrangeiro, o deficiente, o negro, o indígena etc.
Samba enredo da escola União da Ilha do governador de 2020... último carnaval antes da pandemia.
A qualqueridade ou quodlibetalidade em Agamben é um encontro com a alteridade, com outros modos de ser, sob um modo de potência, com seres que inquietam e incomodam, com sua presença, os bons costumes e suas normas que “até mesmo quando falam de si, em uma língua mais ou menos inteligível, eles perturbam os nossos esquemas representativos, pois, ao dizerem-se de outros modos, põem em cheque (sic) a exatidão dos nossos modos de dizer, de dizer-nos humanos (...)” nos provocam “...(nos) expõe e põe em risco, depondo os próprios saberes do campo pedagógico.” E nos mostram que é possível fazer outros usos da corporeidade, da língua e viver outras formas possíveis de ser. Skliar nos ajuda a pensar na perspectiva da quaLqueridade na educação como um ponto de partida necessário para pensar o encontro: disponibilidade e responsabilidade no encontro com cada um: “Como eu faço para ensinar a qualquer um? Sei que isso não seria suficiente. Isso seria como uma parte do trabalho, na medida em que seria a primeira parte do trabalho (...) o que há em qualquer um, há também em cada um: algo específico, singular(...) uma
arte de saber que no início é o trabalho com qualquer um e, com o passar do tempo, com o passar da conversa, com a experiência, com o trabalho, vamos saber identificar o que tem de cada um nesse qualquer um. Mas não se trata apenas dos outros como cada um e como qualquer um; nós também somos qualquer um e cada um” .
Assim, quem sabe possamos educar não mais a Todos, esse ser abstrato e inexistente, mas a qualquer um e a cada um: “La cualqueridad y la cada-unicidad com las que venimos al mundo. Y com las que nos marchamos de él” .
Assim seguimos ca(n)tando fragmentos e rabiscando o presente... E, por mínimos, talvez, possamos arriscar juntos com o outro a potência da produção de uma educação qUaLquER, para qUaLquER um, como possibilidade de experiência trans (de)formadora.
E talvez –entre tantos restos– quem sabe, fazer potência com coisas catadas, rabiscando nos en(tre)contros com outras corporeidades uma vida fragmentária qualQUER, que profana usos e costumes , regras e ditames, com sua existência e quem sabe, nesse movimento, produzir um cada um, com cada um, entre nós.
Profanar como um desvio, como a ação de “destituir as coisas, o tempo e o espaço de seus usos comuns (Agamben, 2007). Interessante que, a partir do conceito de profanação fabricado por Agamben, Masshelein e Simons propõe a ideia de profanação na escola, profanação como constituinte de tudo que compõe o escolar. (Masshelein; Simons, 2019)





Por fim (e pelo meio) apenas fragmentos, restos e rabiscos.


Em 26 de setembro, como parte das celebrações do chamado “mês dos surdos”, apresentamos no auditório da escola a história “A moça tecelã” de Marina Colasanti, para os surdos da EMPF e seus professores. Uma performance com Libras, pantomima, vídeo e diferentes materiais. Na plateia, as crianças menores gargalhavam, os adolescentes de boca aberta atentos às reviravoltas, entre os professores, Renata e Juliana emocionadas, Wandréia se debulhando em lágrimas e um sério professorarteiro segurava o queixo, franzia o cenho, com olhos fixos na apresentação, mas a mente ganhando mundo.
Três meses depois desse dia, na última semana de aula em uma conversa descontraída com o professorarteiro, relembramos a história que nos acompanhou durante aqueles meses, ele aproveitou o gancho e perguntou:
- Você reparou em como eu estava naquele dia no auditório?
-Que dia?
-Quando você apresentou ‘a moça tecelã’ para gente... Após a história, fiquei quieto, não ouvi quase nada durante toda discussão que rolou depois com os estudantes... Porque enquanto você contava a história, eu a roubava para mim, a escrevia em minha pele... Mil pensamentos passavam em minha mente ao mesmo tempo: 10 anos de relacionamento estável com meu companheiro, um filho de 4 anos e tanta coisa tecida com paixão... Você já sabe que eu me separei, você conhece o desfecho. Mas o que eu não contei é que foi naquele dia que eu decidi me separar. Afinal, se como a moça tecelã eu havia tecido aquilo tudo que havia se tornado tão pesado, eu poderia destecer. Eu podia fazer isso!... Isso de tecer e destecer a própria vida... e começar de novo, sabe? Começarmos de novo, meu filho e eu.
(Crônicas Rabiscadas, 05 de dezembro de 2022)




O professorarteiro e uma moça tecelã...
Nosso livro querido, de Marina Colasanti (2004), conta a história de uma moça que tem um tear mágico e tece sua realidade a partir dele. Um dia, sentindo-se sozinha, tece um marido. Mas, quando ele descobre a magia do tear, a faz tecer projetos ambiciosos sem descansar. Percebendo que já teceu de tudo, a moça então puxa o fio e destece tudo de volta, até mesmo seu marido. Ao se encontrar sozinha novamente, percebe que tem tudo o que precisa e se sente suficiente e satisfeita consigo mesma.
“Tener alguna autoría en lo que somos” ...
Após vivido, rabiscado, lido e relido tantas e tantas vezes, chego aqui sem conseguir comentar o relato que trazemos nesta crônica... é o que resta, e como um resto querido, guardei-o durante algum tempo e creio que continuarei a guardá-lo.
(Repito não sei quantas vezes, por esses platôs, essa citação) “Tener alguna autoría en lo que somos” , quem sabe nos fazendo ao mesmo tempo os artistas e a obra que vamos nos tornando? Ressoa a moça, ressoa o professorarteiro, ressoamos nós... Rabiscando modos possíveis de produzir a vida, modos possíveis de escrevê-la: apagando, ajustando o assento, apontando lápis e tornando a reescrevê-la, sempre que quisermos (É possível? Talvez nem sempre).
Na palavra professorarteira cabem:
● A artesã, não porque crocheta ou borda, mas porque na educação produz coisas, não grandes coisas, mas coisas únicas, singulares.
● A artista, não porque dança, mas porque inventa a vida.
● A arteira, porque desvia.
Mas seu corpo não é um só, mas um emaranhado de linhas e afetos de outros corpos que nos fazem e nos trans(de)formam no encontro (apenas eles importam).
No encontro com outros a tecer coisas novas. Não coisas grandes ou mirabolantes, mas coisas únicas, pois ela cria peças únicas que passam a integrar o mundo.
Professorarteira: “Todos os semestres, novas turmas, outros alunos para o mesmo professor ‘artesão’? O mesmo professor? Certamente que não. Ele se constitui de forma diferente a cada experiência formativa no processo da ‘artesania de dar aula’”

Nesse rabiscar sem fim, em algum momento, encontros chegam ao fim. Não porque acabam, mas porque são interrompidos e assim podem produzir outros novos e imprevisíveis encontros. Mas como a pele anseia por viver e reviver o momento fremente de arrepio do encontro, costuramos e deixamos ao mundo (ao nosso pelo menos) também um álbum de memórias de encontros iniciados em 2017 e que continuam em algum tempo.
Antes da despedida, um último gesto faz ecoar a rabiscação sem fim que produz nossas vidas. Assim, em 2023, catamos fragmentos do que passou, das coisas que se passaram entre nós, daquilo que passou em nós, em meio a uma multiplicidade de experiências vividas ao longo de sete anos entre idas e (bem)vindas de oficinas, compondo um álbum de memórias. Um álbum múltiplo, de memórias atualizadas no presente e que, ao serem retomadas, se transformam e seguem rabiscando nossas vidas de outros modos.








Rabiscar, como possibilidade de escrever a vida.
Gesto que cato e guardo.



Finalmente, sempre se tem os órgãos e as funções que
correspondem aos afetos dos quais se é capaz.
Deleuze e Parnet

