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platô AvóS

implicação (ou das avós a uma professorapesquisadora que no meio do VíRUs rabisca, gagueja, dança e propõe encontros...)

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No meio do caminho tinha um vírus

Tinha um vírus no meio do caminho

Tinha um vírus

No meio do caminho tinha um vírus

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha um vírus

Tinha um vírus no meio do caminho

No meio do caminho tinha um vírus

 

(Rabiscando as pedras de Drummond)

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Queridas amigas, no Coletivo,

Sinto-me experimentando um caminho bem diferente do tempo em que cursei o mestrado, o que é angustiante e trans(de)formador.  No mestrado cheguei 'pronta', tema, proposta e cheia de objetivos… os objetivos abandonei, mas, iniciei mais ou menos estruturada… Conseguimos rapidamente montar um 'pré-sumário', que foi sendo mexido com o tempo, mas inicialmente foi o que me orientou pelo caminho que ia sendo modificado aos poucos.

Agora me vejo abandonando coisas a cada esquina… Eu abandonei quase todo o projeto após a submissão dele; na entrevista já pensava outras coisas; na matrícula; na primeira Orientação Coletiva... reescrevi quase tudo e parece que não paro de sacudir e deixar palavras caírem pelo caminho…

Mas sobraram algumas palavras em minhas mãos, ainda estou apegada a elas – como a palavras de ordem, eu sei, eu sei –, o abandono de algumas coisas, às vezes, dói um pouco mais.

Acho que tem muito a ver com o momento que estamos vivendo, de víRus e de isolamento, sabe? Juntas, o que fazemos me foRça a abandonar mais e mais – sozinha não conseguiria –, tem mais coisa para abandonar ainda. Eu também sei. Mas também preciso de chão (preciso?). Experimento contar algumas coisas do que se passa no encontro com as crianças e meus incômodos, quem sabe daquelas perguntas acharia meu problema?... Mas me vejo em mais abandonos novamente...

Incrível que, de algum modo, a perspectiva é ao mesmo tempo fascinante, sabe? A ideia de ir fazendo o caminho enquanto se caminha… Mas é também agônica pela necessidade que, por vezes, tenho de ver o chão antes de dar ao pé, o passo. Mas vamos vendo, quem sabe eu consigo. Peço desculpas (ou não), mas dentro de mim está tudo misturado.

Tempo de abandono...

Talvez seja necessário saber menos para me abrir mais (e dói).

 

Com afeto,

Arina

 

Niterói, 03 de abril de 2021

Um e-mail, um desabafo.

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Em 11 de março de 2020 a OMS (Organização Mundial de Saúde) decreta estado de pandemia em relação ao vírus Sars-CoV-2. Esta pesquisaescrita inicia-se no início do ano de 2021, segundo ano de distanciamento físico: corpos que não podem tocar-se, uso de máscaras e luta por vacinas. Um momento em que o mundo vivia (vive) a Pandemia da Covid 19, causada pelo coronavírus. Assim, em uma escrita que se produz como processo, incrustrada no tempo em que é forjada, as marcas deste tempo a atravessam, a produzem e são produzidas por ela. Nos anos de rabiscação desta pesquisaescrita em contexto global vivemos a Pandemia da Covid 19, mas escolhemos aqui também rabiscar esta palavra como PANDEM(ônio)IA para narrar da experiência de pandemia que temos vivido em nosso país que tem a ver com todo um contexto não apenas sanitário, mas também político e social que experimentamos durante este período, como explicitamos mais de forma mais direta na NotaPresa do platô Avós

     Um vírus. Um vírus e o meu diário... 40 dias que se tornaram 41, 42, 57... 103... 244, e contando... Me encontro rabiscando memórias de escola, alinhavando o que me move a fim de produzir um projeto de pesquisa a partir de incômodos e intenções...
     Mas existe um víRus. 
     Um víRus e minha avó, minhas avós, minhas tias avós, que não saem do nó embolado que se formou em minha garganta. 
     Estamos em meio a um(a) PANDEM(ônio)IA ,  é urgente pensar em práticas pedagógicas para o hoje, para o instante, no instante em que vivemos... o amanhã é incerto – sinto como se nunca tivesse sido tão incerto – não nos cabe mais ficar pensando no que vamos fazer quando estivermos presencialmente juntos... 41 dias, 42 dias... 344, 381, 603,  e contando... Não se sabe quando e nem como poderemos nos tocar. 
     Os dias passam a conta gotas, escorrem feito ampulheta. E o doutoramento? E a escola? E a pesquisa? São apenas linhas, linhas que escolhemos tramar, agenciando umas com as outras, forjando nossos problemas. Quais linhas nos compõem, como se tramam? Há um campo problemático a rabiscar-se por essas linhas: 
(EnTRe)
     a minha casa durante a pandemia que, no que se convencionou chamar de ambiente remoto, acolhe a escola, acolhe os estudantes – por vezes, em conexões um tanto desconexas e
(EnTRe)

     a casa deles onde sou também acolhida, e
(EnTRe)

     papéis catados e rabiscados por dedos trêmulos, e
(EnTRe)

     o teclado em que, por vezes, sangro, e
(EnTRe)

     esta tela retangular em que forçamos fazer caber os nossos corpos gaguejantes, e
(EnTRe)

     passos vacilantes de um retorno presencial sem vacina.
 

Mas o que urge?

Quais linhas desse desassossego se rabiscam por aqui hoje e agora?


     Urge a necessidade de um escreverpesquisar titubeante no hoje, para o momento vivido, para o caos urGente... O que tínhamos passou, não volta – que não volte! – restam cacos, nos resta catar palavras... resta produzir o hoje com o que se tem, menos do mesmo – sempre desigual –, e inventar outros possíveis. 
     “Como captar o que acontece, não sei captar o que existe senão vivendo aqui cada coisa que surgir e não importa o quê” .
     (Na garganta está minha avó, minhas avós, minhas tias avós... não paro de pensar nelas…)

Clarice Lispector, Água Viva, 2019, p. 34

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     Quantos diários rabiscados nessa Pandem(ônio)ia? Acho que nunca tinha me apegado tanto a eles... “e cada coisa que me ocorra eu anoto para fixá-la. Pois quero sentir nas mãos o nervo fremente e vivaz do já e que me reaja esse nervo como buliçosa veia” . É verdade que não sou boa com as palavras, sempre gaguejo ou tropeço em cada uma quando falo, quando escrevo…É que fomos todos assolapados por essa crise(víRus) e “é sempre em crise que gaguejamos” . E já que gaguejo resolvi então catar... cato aqui umas palavras com minha avó, outras ali com Clarice, outras acolá com Deleuze, ou com Anelice...“uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre: ‘selvagens, bárbaros, nobres decadentes e marginais’. Isto te diz alguma coisa? A mim fala.” .

Clarice Lispector, Água Viva, 2019, p. 35

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Barros e Zamboni, 2015, p. 123

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Mais uma vez, Clarice, 2019, p. 41

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     Talvez, rabiscando e fazendo a língua gaGuejar possamos arriscar expressar em alguma língua qualquer, o indizível que atravessa nossos corpos... “o corpo gagueja, o pensamento vacila(...) é a potência da vida que nos causa gagueira” ...
     Por hoje me basta gaguejar aquilo que não é palavra e transformar toda essa dor em outra coisa… em vida a pulsar – ainda estamos vivos! Para alguns, vivos em parte… outros tantos (milhões) não mais.
     Atravessada por vocês, minhas amigas, chego até aqui, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais, da Faculdade de Formação de Professores, em nossa querida UERJ, e sacudo um pré-projeto, um tanto inerte que enviei ao processo seletivo de doutorado... (na época o bolo na garganta doía demais para me expor). Mas, penso que é hora de rabiscar e riscar... – amigas, voltarei aqui muitas e muitas vezes, vocês me acompanham? É porque não dá para me abrir ainda, sabe? – Esforço-me e aqui vão alguns rabiscos... e é tudo o que tenho... por hora (vamos ter que sacudir mais).
     Escrevo na pandemia e guardo... o que guardo? Aquelas que vieram antes de mim... Às vezes me vejo cumprindo minhas pedagógicas obrigações (burocráticas) –  numa tal de plataforma virtual  que os estudantes não acessam – como um zumbi, ou talvez como Amaranta Úrsula na varanda a tecer e destecer eternamente sua mortalha, numa tentativa, talvez, de sustentar algum possível da vida enquanto essa passa. 
     

     Desculpe, é a minha avó... 

Barros e Zamboni, 2015, p. 123

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Durante os dois primeiros anos de pandemia os sistemas de ensino em que trabalhei, nas redes educacionais das cidades de São Gonçalo e Niterói (RJ), experimentaram diferentes tipos de plataformas digitais e programas no intuito de atender aos estudantes, garantindo-lhes o direito à educação dentro de suas casas. Contudo, a maior parte dos estudantes com os quais convivi neste período não tinham acesso a tais programas e plataformas, não houve efetivamente neste período programa governamental de acesso à internet para os estudantes que tivesse alcançado impacto no cotidiano desses estudantes. Em grande parte, o contato que conseguimos foi via redes sociais, meios mais acessíveis e leves para os aparelhos celulares e pacotes de internet de que dispunham, ou via material impresso, pois ainda assim muitos não tinham acesso à smartphones com pacote de dados.

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Amaranta Úrsula Buendía, personagem do livro “100 Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Márquez.

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     Eu sei, eu sei... não é ela, sou eu, mas é que essa pandemia toda parece caber em uma quitinete, no bairro de Pacheco na cidade de São Gonçalo... e eu não posso nem chegar perto. 
     Pensar no hoje, pensar no presente, repito. Ok. Escola. Estudantes. Professora. Projeto de doutoramento. 
     E o que escrevo? 
     Escrevo pensando na escola... uma escola de mãos dadas com minha avó. 
     E não paro mais.
     Porque eu descobri que em minhas memórias de escola mais antigas ela estava lá, nas mais ao meio e nas mais recentes também e “mesmo que eu diga ‘vivi’ ou ‘viverei’ é presente porque eu os digo já” 
     Uma frustração: em um ano chamado 2020 reuniria minhas avós e tias avós em uma mesma sala, numa casinha em Curitiba-PR e as ouviria falar, brigar, brincar, se emburrar, e me mostrar fotos antigas... Mas tinha um víRus no meio do caminho… Minha pertença, histórias, memórias?... Por que eu demorei tanto para me atentar para isso? Indago-me, mas não adiantava mais me lamuriar, resta-me catar palavras como cacos e registrar memórias. 
     Nunca foi tão urgente essa ligação com minhas avós… me entender, me entramar, pertencer... 
     A embolorada pedra da diferença de cores parece incomodar ainda mais... a agônica pedra lateja sobre meu pertencimento e se inflama nesses tempos de víRus. 
     Perambulo, vagueio e me perco com lembranças da minha avó... O medo não me deixa não pensar nela, nelas, as derradeiras de suas famílias multitudinárias, as mulheres, apenas elas, persistem nesta grande bolaTerra.
     Nas memórias de uma professora... ela sempre esteve lá. 
     APAVORAMENTO! O vírus me levou uma delas, a vó Irene (avó por acolhimento). Ela se foi... na mesa ficaram os brincos usados (seus derradeiros). Um mês depois, em seu quintal, a mangueira, descomunal símbolo de sua garbosidade, secou COMPLETAmente e caiu. 

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Clarice, de novo... 2019, p. 34

     Eu não paro de pensar nelas... a viagem marcada... as fotos não tiradas, o sorriso já impossível de capturar...  a tentativa de me compreender através dos olhos delas. Rememorar e me apegar aos meus ancestrais... Registrar suas memórias e eternizar estórias qualQUErES, não dignas de historicidade – da História com maiúsculas – por sua cor, sua estirpe.
     Rabisco então por minhas atualizações da memória de formação e por algumas das delas e registro... volto ao chão de barro, no caminho da escola, lugar onde um dia entrou uma menina e da qual uma professorarteira não sairia mais... 

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Jardim de Infância, Engenhoca, Niterói - 1992

Hora da Entrada:

 Chego na escola de mãos dadas com minha pessoa adorada... adultos com crianças olham para nós e cochicham entre si.

Hora da saída:

     Estou no meio de uma roda de crianças que conversam: “a avó dela é preta”. Elas giram ao meu redor e dançam cantando: “sua avó é preta... sua avó é preta...”

Desesperada – sem entender as palavras, mas entendendo bem o desprezo – eu choro e grito: “minha avó não é preta! Minha avó não é preta nada!”

A pessoa adorada chega, corro, agarro suas pernas:

“Vó tão dizendo que você é preta!” ... A pessoa adorada olha ao redor com compreensão e para mim com afeto… afaga meu cabelo.

Naquele dia eu aprendi algo: (para eles) preta é ruim.

 

(Diários rabiscados,

07 de novembro de 2020)

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Algum tempo depois na comunidade da Coréia, Fonseca, Niterói...

- Veste a saia de pregas?
(A profissão nobre)
Eu, professora
(A profissão bela)
O sonho da preta avó da favela.

Um dia, em meu primeiro ano de Curso Normal, marquei de encontrar minha pessoa adorada depois da escola à tarde. Iríamos tirar minha carteira de trabalho no centro da cidade, documento muito estimado por minha avó. De um modo inicialmente incompreensível para mim, os olhos dela brilham com a expectativa de nosso passeio juntas. Pela manhã, acorda-me cedo e me recomenda a vestir o uniforme completo (de normalista) para ir à escola.

“- Minha neta vai ser professora!!!”

(Diários rabiscados 07/02/2021)

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Um elogio a ela
e ao avesso, o
lado que se
invEntou (em
mim)

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Algum tempo bem antes... 
Blumenau, SC

Ela com seu livro preto embaixo do braço e os pés descalços...ela, uma mulher preta do século retrasado. Os salmos, sabia de cor... seu sonho? A profissão nobre:  tornar-se professora. Mas não pôde ir à escola. Entretanto, aos 75 anos, sem pai, nem marido para atrapalhar e sem os netos perto para ler para ela os textos sagrados, resolveu estudar. Professora queria ser... e conseguiu! No decurso dos dias, para escola pedalando ia ao segurar os chifres de sua magrela. Aos domingos ia descalça, garbosa e altaneira: era professora na Escola Bíblica Dominical e lá ia ela, com o livro preto embaixo de um braço e os sapatinhos pretos embaixo do outro calçava-os apenas antes de entrar na igrejinha (reverente que era) e os retirava assim que descia os degraus, sedenta por deitar suas raízes na terra vermelha. Suas unhas faziam raízes com o chão de terra... por essas raízes viveu e, quando lhe foram cortadas, por elas também morreu.

Dona Maria Américo, nascida em 06 de setembro de 1894,

minha tetravó.

(Diários rabiscados de causos contados por minhas avós,

02/03/2021)
 

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das avóS
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     Cacos de memórias de formação.
     Atualizar memórias de pertencimento e me encontrar improvável nelas... a neta, a filha, a irmã. 
     A gente descobre o que difere quando sai de casa. A tal da ‘conversa’, nunca tiveram comigo, afinal, minha pele é clara e não sou achincalhada pelas esquinas por policiais armados ou perseguida em mercados como o são meus irmãos. Mas sempre tive uma agoniazinha... menor, qUalquEr – bem menor se comparada com as do meu pai nos dias de confronto na favela em que não podia voltar para casa – mas uma agônica pedra minúscula chutada do meu pertencimento. Quem nasce com a pele escura sabe bem como é descobrir lá fora, na perspectiva deles, que é ser ‘diverso’ e, mais que isso, inferior. 
     Aqui, o “deles” refere-se não apenas ao homem branco, civilizado, normal, culto e de classe média, mas também ao “homem branco, civilizado, normal, culto e de classe média” que vive em nós como ideal, que permeia nossas relações em uma sociedade historicamente racista e excludente. 

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palavra acostumada: os olhos “deles” em nós(mim)

- “Sua avó é preta!”
- “Onde vocês pegaram essa menina aloirada?”
- “Tem certeza de que ele é seu pai? Tua mãe não…?”
- “Seu irmão é adotado?” (Meu irmão e eu de mãos dadas)
- “Que sorte! Teu cabelo é bom!”
- “Vocês são namorados?” (Meu irmão e eu de mãos dadas)
- “Não sabia que Martins estava namorando uma menina novinha…”

(meu pai e eu de mãos dadas).
- “Vi seu namorado com uma branca lá no Centro”

(aos ouvidos da namorada do meu irmão)
- “Esse aí, esse aí! Afasta! Mão no carro! Mão no carro!”

(seis jovens voltando de uma festa... 4 jovens de pele clara, eu e meu irmão, ele é o último a descer do carro, o único a ser empurrado no capô, com uma arma na cabeça).
- “Que sorte hein!? Nasceu branca.”

 

(Diários rabiscados de coisas ouvidas - Sem data definida)

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Cacos de memórias de formação.
Atualizar memórias de pertencimento e me encontrar improvável nelas... a neta, a filha, a irmã, a professorarteira sempre a (de)formar-se.
Lá fora – na visão deles, que agE(stá) em nós – descobri não que eu era diversa, mas que os outros que eu amava o eram e que eu tinha ‘sorte’ – por muito tempo tive raiva da palavra “sorte”. Minha pessoa adorada era preta e por isso inferior a mim, assim como todos os da minha estirpe... e eu de onde era? Deles? Eles? Ou dela, com ela… nós?

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reinventando a palavra sorte (em mim)

Frau é uma palavra alemã usada como pronome de tratamento para “senhora” e “mulher” se referindo às senhoras brancas de origem alemã casadas que empregavam em suas casas mulheres como minha avó, na colônia alemã onde nasceu em Blumenau, Santa Catarina.

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A dobrada ou dobradinha, na culinária, é o nome dado ao bucho de animais, em especial do boi, cozido em pequenos pedaços geralmente com feijão branco, grande variedade de condimentos e acompanhamentos.

Alexa é uma assistente virtual, uma Inteligência Artificial (IA) da empresa Amazon integrada em dispositivos Smart Speaker como os aparelhos da linha Echo Dot, alto-falantes inteligentes da Amazon. Para mais informações, clique aqui.

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“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

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Referências à música “Sujeito de Sorte” do Cantor e compositor Antônio Carlos Belchior.

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Considero-me uma neta de sorte, não que seja tudo belo, ano passado eu morri e doeu na carne, mas esse ano vacina! Vacinei três avós e três tias avós, ô sorte! Não morro mais! 
Ontem ela chegou, vacinada e de máscara. Um ano depois, minha pessoa adorada veio me visitar! Ela, a preta irmã de outros sete, que na colônia alemã teve educação suficiente para ler as receitas que faria nas casas das frau , veio trazendo o bucho, a costelinha, o paio, o lombo e o feijão manteiga... Meus olhos brilham ao vê-la. Ao ver o que trouxe, começo a sonhar não tanto com o cheiro, mas com o sabor delicioso de dobradinha . Ela chega e vai direto para a cozinha... um ano e meio se passou, mas ela não esquece, antes de acender o fogão, exclama: “– Alexa , toca Cidinha Livre na Rádio Tupi ”... cheiro das carnes fervendo nos tonteia… Um tempo depois… “– Alexa, desligar.” (respeitosa que é, continua...) “Éhh obrigada, Alexa!... Arina, vem! tá na mesa!”

(Diários rabiscados de uma neta feliz, 01 de junho de 2021)

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(Diários Rabiscados,
19 de março de 2021)

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da menina de mãos dadas com sua pessoa adorada a uma

professora solitária na PANDEM(ônio)IA

Até ontem estávamos vivendo nossas vidas e iniciando o ano letivo, desenvolvendo nossos primeiros projetos na escola, conhecendo nossas crianças pelos seus nomes, pendurando trabalhos nas paredes, e no outro: NADA. Medo. Suspensão de tudo, da respiração. Os trabalhos lá ficaram pegando poeira, todos os projetos interrompidos, não terminamos de aprender todos os nomes, não aprofundamos vínculos afetivos... não houve tempo.
Em casa ficamos todos, a incerteza da doença, a incerteza do salário, a incômoda percepção de que aquele estudante, que acabava de aprender suas primeiras palavras, possivelmente as perderia... A doença está aí, o risco e a dor bate na porta de cada um… um por um... No horizonte, o silêncio: um silêncio devastaDOR

 

(Diários rabiscados 29 de abril de 2020

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     No ano que se chamou 2020, passamos os primeiros meses em suspensão... O silêncio sufocava, parecia um sonho ruim no qual gritávamos sem que ninguém nos ouvisse, nadávamos sem alcançar qualquer borda, debatíamo-nos sem conseguir dar qualquer passo. Queríamos respostas, queríamos saber o que fazer, queríamos gritar, exigindo que nos falassem!!! A Secretaria de Educação não tinha resposta (nenhuma secretaria tinha), a direção não tinha resposta, o prefeito não tinha resposta, nossos colegas não tinham resposta... Em meio a isso, uma enxurrada de falácias enganosas propaladas por um VÍRUS muito pior: um desgoverno com faixa presidencial. 
     Em meio a um turbilhão de fake news  e de dúvidas e mais dúvidas, tínhamos medo de admitir que simplesmente: NÃO HAVIA RESPOSTA. 
     Apenas: “Fiquem em casa”.

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“Fake News são notícias falsas publicadas por veículos de comunicação, redes sociais como se fossem informações reais, principalmente nas redes sociais. Os boatos têm informações irreais que apelam para o emocional do leitor/espectador. Esse tipo de texto, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo (geralmente figuras públicas)." Fonte.

“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

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NotapRESA

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Notapresa - Avós

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra (...)

Drummond

Pedra=PEDRA


     Onze de março de 2020: a Organização Mundial de Saúde (OMS) decreta estado de pandemia do vírus Sars-CoV-2. 
     Iniciamos esta vacilante pesquisaescrita no início de 2021, segundo ano de distanciamento físico: corpos que não podem se tocar, uso de máscaras, luto, luta por vacinas... Um momento em que o mundo vivia (vive, no momento em que escrevo) a Pandemia da Covid 19, causada pelo que chamamos, nesta notapRESA, de “vírus1”, o Sars-CoV-2. 

     Em um contexto global, no momento em que rabiscamos estas linhas, vivemos a Pandemia da Covid 19, mas escolhemos aqui também rabiscar esta palavra como PANDEM(ônio)IA para falar de um “vírus 2”, narrando a experiência de pandemia que temos vivido em nosso país. Uma experiência que não se produz a partir da figura de uma única pessoa, no caso: a do presidente Jair Bolsonaro. Embora, em nosso tempo, personagens como Bolsonaro, ao chegarem ao posto de representantes de estado, personifiquem em seus discursos muito do tempo vivido e aspectos de todo um contexto, não apenas sanitário mas também político e social, como um projeto de gestão política de morte que vivemos estruturalmente e que beneficia as elites brasileiras e que, historicamente, alinha-se com o descarte de certos corpos que supostamente possuiriam menor valor.

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Gallo, Silvio. 2021

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Esta é uma escrita incrustada no tempo em que é concebida, as marcas deste tempo a atravessam, a produzem e são produzidas por ela.

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Você não é você quando está com fome 

/pão=pedra/

Uma delas, a garbosa e altaneira se foi. Luto, dor e suspensão… Mas outras duas ainda me restam, duas que precisam ser cuidadas. 
Duas vacinadas! 
E eu: 2ª dose. 
Sinto que posso, enfim, começar a respirar! 
Ontem fui com alguns amigos em um shopping popular no centro da nossa cidade. Um desses lugares de passagem que muitos podem entrar, no qual seguranças não perseguem (tanto) quem entra com a marca da pele preta, pedindo ou vendendo algo. Um lugar que anos atrás eu frequentava para avistar a baía de Guanabara e tomar um sorvete.
Na entrada do shopping, meus amigos e eu fomos abordados por pedintes, ao chegar nas escadas, fomos abordados outra vez, na praça de alimentação também. Sentamo-nos e, antes de pedirmos algo para comer, compramos algo para uma das pessoas que falou conosco. Vagou uma mesa maior, atravessamos o espaço e nos sentamos em outro lugar. Pedimos nosso almoço. Mais um número faminto de mulheres, crianças e homens nos abordaram vendendo balas ou pedindo algo... Naquele lugar de minha adolescência, nunca tinha visto tamanha agudização! O painel do restaurante mostra o número de nossa comanda, meu companheiro e amigos se levantam para pegar nosso almoço. Organizamos os pratos na mesa, cada um, por sua vez, serve-se. Olho para o saudoso prato de minha adolescência à minha frente. Reviro a comida com um garfo.
A fome gritava por todos os lados…
...o prato à minha frente 
...perco a fome. 
(eu ainda perco a fome.)

 

(Diários rabiscados dos abandonados à própria s(m)orte - 23 de abril de 2022)

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Título do artigo autor Samuel Lima, na coleção Pandemia Crítica da Ed. N-1, 2021.

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     Tem que “ter o ouvido de tuberculoso para o ronco da barriga” , para não ouvir os gritos de fome que só aumentam em meio a esse PANDEM(ônio)IA. Privilegiados os que podem cuidar da própria saúde, no alto de suas torres, em palacetes (como chamou minha avó ao subir pela primeira vez até o quinto andar dos 50mts² onde moro), trabalhando remotamente, fazendo ouvidos moucos. Gritos que contrariam nossa paz ou mesmo nossa crise de ansiedade e depressão provocadas pelo isolamento. Lá embaixo, os gritos não param de se multiplicar.

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LIMA, Samuel, 2021, não paginado.

“E DAÍ? TODO MUNDO MORRE.”

     “‘É o trem’, a expressão nas músicas funkeiras brasileiras que, sejam o quanto forem criminalizadas, sempre localizam os corpos cansados de serem mortos, e preferirem, no caso, morrerem ‘atirando’, mas nunca da fome de viverem” .

 

“E DAÍ? TODO MUNDO MORRE!”

     “A ‘bala come’, e a trama do drama se dá como ponto cego que nos desloca para barreiras presentes no jogo ontológico. George Perry Floyd Jr. em Minneapolis, nos Estados Unidos. João Pedro Mattos Pinto aqui, no Brasil, em São Gonçalo. Ambos assassinados pelo vírus do racismo”. 

     E lá do quinto andar consigo ver:
     “Gente que não está conseguindo se comprometer com o isolamento social, porque tem que comer, sobreviver. Então, "dibicamos" a pipa "pós-COVID" no ar para avisar que "babou"! (...). É o retrato do corpo, o lugar da angústia, das depressões, do luto, da dor, da força, da doença, da cura, do gozo pela vida tanto quanto pela morte, da fome, do racismo.” 
     A preferência pela sobrevida de alguns…

 

“E DAÍ? TODO MUNDO MORRE!”

     E nessa conta, vó Irene aos 91 anos... corpo (dito) improdutivo, já foi tarde! Sufocada com os pulmões esmagados por um vírus de morte.

 

“E DAÍ? TODO MUNDO MORRE!”


     Nosso chefe de Estado (marionete dos representantes da elite brasileira, dona desse país-latifúndio) segue descartando os corpos de morte.
     Corpos de morte. Em um tempo pós-colonial, em um país pós-escravagista, a morte faz parte do jogo político, faz parte do jogo econômico. A morte “se torna o espectro de todos os espectros e configura a ordem política na forma da soberania de um corpo político, que adia a morte de quem a ele pertence” . A vida torna-se sobrevida e esta fica reservada aos mais aptos para trabalhar. Em relação à morte, cabe adiá-la ou antecipá-la, depende de a quais corpos se refere. No "fazer viver e deixar morrer", gerencia-se uma biopolítica de morte e descarte, “a morte do outro não é simplesmente a minha vida (...) a morte do outro é a morte da raça ruim, da raça inferior (do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar, a vida em geral mais sadia, mais pura" . 

     Adia-se a m(s)orte apenas de alguns, afinal o leme não se move sozinho. Essas vidas (de alguns) ainda são necessárias para gerir a sobrevida de uma massa de corpos úteis à economia. “Bolsonaro ecoa a opção dos dirigentes nessa pandemia: manter as pessoas vivas ou a economia girando” e antecipa a m(s)orte da massa dispensável e improdutiva. Em nosso tempo, a pandemia não cria projetos novos, apenas agudiza o escancaramento de um projeto que já estava aí rolando há muito tempo, em especial, nos países de herança colonial como o Brasil .

 

"E DAI? MORRER É NORMAL, TODO MUNDO MORRE, MAIS CEDO OU MAIS TARDE.

EU LAMENTO O QUE QUE EU POSSO FAZER?"
"TAMBÉM SE MORRE DE FOME E DESEMPREGO"

 

   “Uma preferência pela sobrevida dos mais aptos a trabalhar. A chefe da superintendência de seguros privados [DESCARADAMENTE!] completa: "A morte de idosos melhorará nosso desempenho econômico pois reduzirá o déficit previdenciário". Entre as variáveis previdenciárias, há o número dos que sobrevivem mais do que sobretrabalham e mais do que sobrevalem. Que não vivam mais e resolve-se o problema de balança.” 
    Escolhendo tipos de vidas como desculpa, nega-se o cuidado, nega-se a ciência, afinal, a economia não pode parar! Não pode parar de encher os bolsos das poucas vidas escolhidas…
     

       Do outro lado, GRITAMOS:
             

             Corpos matáveis, 
                         

                     Corpos de descarte, 
                                   

                             Corpos de MORTE!

1 - Massa DISPENSÁVEL: Pobres, negros, mulheres, indígenas, imigrantes, populações de rua, apenados, latinos, trabalhadores informais, refugiados, LGBTQIAPN+... (O mundo está cheio deles, os que morrerem, são número, gado não faltará para puxar o travessão dessa grande moenda.)
2 - Massa IMPRODUTIVA: corpos chamados deficientes, defeituosos, loucos e anormais… corpos idosos, corpos velhos… e o corpo de Irene. 

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LIMA, Samuel, 2021, não paginado.

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LIMA, Samuel, 2021, não paginado.

Lima, Samuel. 2021, não paginado.

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Bensusan, Hilan. 2021, sem página.

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Foucault, 2005, p.305

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Bensusan, Hilan, 2021. Sem página.

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Santos, Boaventura. A cruel Pedagogia do vírus, 2020.

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Bensusan, Hilan, 2021.

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PANDEM(ônio)IA:

     Pão, vacina e educação! Gritam os grupos mascarados que vão à rua protestar em meio a esta PANDEM(ônio)IA. Falta comida, falta vacina, falta educação... falta agora, já faltava antes e o projeto vigente é de assim continuar, pois “em situações de emergência, as políticas de prevenção ou de contenção nunca são de aplicação universal. São, pelo contrário, seletivas. Por vezes, são abertas e intencionalmente adeptas do darwinismo social: propõem-se garantir a sobrevivência dos corpos socialmente mais valorizados, os mais aptos e os mais necessários para a economia. Outras vezes limitam-se a esquecer ou negligenciar os corpos desvalorizados.” 

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Boaventura, 2020, p. 26-27.

"ESSA É UMA REALIDADE, O VÍRUS TÁ AÍ. VAMOS TER QUE ENFRENTÁ-LO, MAS ENFRENTAR COMO HOMEM, PORRA! NÃO COMO UM MOLEQUE. VAMOS ENFRENTAR O VÍRUS COM A REALIDADE. É A VIDA. TODOS NÓS IREMOS MORRER UM DIA."


"LAMENTO A SITUAÇÃO QUE NÓS ATRAVESSAMOS COM O VÍRUS. NOS SOLIDARIZAMOS COM AS FAMÍLIAS QUE PERDERAM SEUS

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ENTES QUERIDOS, QUE A GRANDE PARTE ERAM PESSOAS IDOSAS. MAS É A VIDA. AMANHÃ VOU EU"
“PARECE QUE ESTÁ COMEÇANDO A IR EMBORA ESSA QUESTÃO DO VÍRUS, MAS ESTÁ CHEGANDO E BATENDO FORTE A QUESTÃO DO DESEMPREGO”
TÍNHAMOS E TEMOS DOIS INIMIGOS, O VÍRUS E O DESEMPREGO. É UMA REALIDADE. NÃO É FICANDO EM CASA QUE VAMOS SOLUCIONAR ESTE PROBLEMA. "
"[A VACINA] TOMA QUEM QUISER, QUEM NÃO QUISER, NÃO TOMA. QUEM É DE DIREITA TOMA CLOROQUINA. QUEM É DE ESQUERDA TOMA TUBAINA."
“[ESTOU] MELHOR QUE O PESSOAL QUE TOMOU CORONAVAC”
“NÃO HÁ NADA COMPROVADO CIENTIFICAMENTE SOBRE ESSA VACINA AÍ”
“VAI COMPRAR VACINA, SÓ SE FOR NA CASA DA SUA MÃE”
“TODOS QUE CONTRAÍRAM O VÍRUS ESTÃO VACINADOS, ATÉ DE FORMA MAIS EFICAZ QUE A PRÓPRIA VACINA, PORQUE VOCÊ PEGOU VÍRUS PRA VALER ”

Lembramos aqui discursos que me reviram o estômago, mas que não podem ser esquecidos. O contexto? Momento em que nossos entes queridos, pessoas que não conhecemos e nós agonizávamos a dor do vírus. Você pode consultar esses e outros discursos que trazemos, aqui clicando em: Fonte 1, Fonte 2, Fonte 3

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Nos anos de rabiscação desta pesquisaescrita nos assolapa um vírus2, um muito maior... uma ferida cancerígena, ulcerante, encravada em nossa terra.

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não danÇa
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Pedra=Poesia

             Vaslav Nijinsky, 22 anos, bailarino, louco, incurável . 
             Auguste Rodin, 72 anos, afamado escultor parisiense. 
             Rodin assiste maravilhado ao balé de Nijinsky.
          O ano é 1912 e são 12 minutos de ato: L'Après-midi d'un faune (A tarde de um fauno) dos Ballets Russes. Um jovem fauno amoroso flerta e segue ninfas, ao final recolhe um lenço deixado por uma das beldades e se masturba. Na plateia aplausos e vaias. Afinal, o ano era 1912, hoje seria diferente (seria?). “movimentos vis de bestialidade erótica e gestos de pesada falta de vergonha”, escreve o jornal Le Figaro. 
             Na plateia, Rodin absorto diante dos movimentos bruscos deliberadamente desajeitados de Nijinsky, "deliberadamente estranho" e "sem jeito".
             Efeito: um /entre/ de dois de dois artistas.
             Duração: 25 cm de pura energia! 
         Nesses 25 cm de bronze, Rodin esculpe. Esculpe não o corpo de Nijinsky, mas o efeito do encontro do corpo de Nijinsky com o seu. Dá vida à escultura, não de uma pose, mas do próprio movimento. 

LE FIGARO, 1992. Disponível aqui.
Outras páginas consultadas: Página 1, Página 2

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Segundo psiquiatras de Zurique.

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Nijinsky – escultura em bronze

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     Durante o período da pandemia, tive o privilégio de fazer parte de coletivos muito ativos compostos por mulheres incríveis nas escolas em que atuava, nas cidades de Niterói e de São Gonçalo. Não sabíamos ficar paradas, como professoras, afogadas em uma cacofonia de emoções, sentíamo-nos completamente inúteis e tínhamos medo de admitir o vivido e sufocar no MEDO. 
     Em meio a esse caos, transitei por três escolas. Durante quase dez anos, atuei como professora orientadora pedagógica no município de São Gonçalo. No início da pandemia, atuava na Escola Municipal Prof. Evadyr Molina, escola em que atuei mais tempo em São Gonçalo (sete anos nesta e, antes, três anos em outras duas escolas), mas da qual saí no primeiro ano de pandemia pois assumi um novo cargo em Niterói. Já fazia parte de um outro coletivo de professoras na Unidade Municipal de Educação Infantil Portugal Pequeno, em Niterói, desde o ano de 2013, como professora regente e, a partir de 2019, atuando na Sala de Recursos Multifuncionais . E passo a integrar também um novo coletivo de professoras na Escola Municipal Prof. Maria de Lourdes Santos Barbosa a partir da segunda metade de 2019, atuando como professora de apoio educacional especializado  na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
     Sobretudo em 2020 e 2021, passamos por várias plataformas digitais, montamos materiais, cadernos pedagógicos, vídeos e mais vídeos...Mas, grande parte dos nossos estudantes – crianças, jovens e adultos – não tinha acesso, não havia internet, não havia celulares suficientes... 
Arriscamos produzir canais de comunicação com os estudantes e familiares via redes sociais. Professoras escreveram recados de ânimo para pais e estudantes. Começamos a gravar vídeos contando histórias, estudamos, partilhamos materiais com orientações sobre o período de isolamento, propusemos brincadeiras, desenhos, atividades lúdicas... Sempre preocupadas em buscar formatos de mídias mais compatíveis com celulares, pois a maior parte dos estudantes não tinham computadores em casa. Ansiávamos por produzir algo neste contato, amenizar os efeitos do distanciamento físico com nossas crianças e produzir algum conforto em meio a inúmeras dificuldades que famílias encontram ao não ter mais seus filhos diariamente na escola. Houve retorno, as famílias começaram a responder e a participar. Diante dos retornos iniciais, do crescimento no número de pais e estudantes participando, sentimo-nos “úteis” e, por breves momentos, satisfeitas e envaidecidas com nosso progresso.
Um breve alívio... 

    Mas um incômodo lá no fundo continua...

        A angústia torna-se laTente outra vez... 

            Ainda assim, não alcançamos todos. Nem em 2020, nem em 2021, nem... 

                    Governos sem propostas organizadas de políticas de acesso.

                            Sentimo-nos reforçando, mais uma vez, a eXclusão.

     Ansiávamos pela volta da vida que considerávamos “normal”. Mas já não havia como. Um normal que era em si mesmo cruel e excludente, mas que nos parecia ingenuamente atrativo, quando se suspende até o que se tinha... Nesse momento, percebemos que vivíamos, sobretudo, a suspensão do saber, pois não sabíamos. Apenas não sabíamos... E depois? Seríamos nós os mesmos se já não o somos agora? “Haverá vontade de pensar em alternativas quando a alternativa que se busca é a normalidade que se tinha antes da quarentena? Pensar-se-á que esta normalidade foi a que conduziu à pandemia e conduzirá a outras no futuro?” 

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Espaço para Atendimento Educacional Especializado (AEE), prestado de forma complementar ou suplementar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes condições de acesso, participação e aprendizagem. (Programa de Implementação de Sala de Recursos Multifuncionais – portal.mec.gov.br)

“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

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Segundo a portaria FME 087/2011 no Art. 37, o professor de apoio educacional especializado é um mediador que tem como uma das suas atribuições dar suporte ao aluno com deficiência em sala de aula, como coadjuvante, colaborador do Professor Regente do Grupo de Referência.

“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

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Santos, Boaventura. 2020, p.29.

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      Em casa, meu corpo torce e retorce: o sonho de escola, o sonho de pesquisar...escrever...viver. Na escola, trabalhando com crianças ou com adultos chamados com deficiência, o toque era nosso guia, o abraço nossa música e a dança nossa libertação. 

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     Na época do mestrado (2017-2019), produzimos uma pesquisaescrita com estudantes surdos em uma escola pública de Niterói movidos pelo problema: Como produzir propostas de ensino que sejam sensíveis às formas singulares de aprender de estudantes surdos, pensando o processo formativo dos surdos, sua educação visual, através de propostas de ensino visuoespaciais na produção de vídeos de animação? Para isso, propomos um exercício cartográfico que tomou como pista a intervenção junto a estudantes surdos da Escola Municipal Paulo Freire (EMPF), em Niterói - RJ. Como campo de intervenção, produzimos oficinas experimentais de produção de vídeos de animação, trabalho que envolveu diversas técnicas visuoespaciais, gestuais e de escrita. O desejo da pesquisa foi o de pensar o processo formativo de estudantes surdos, sua educação visual, através de práticas que emergissem da criação de propostas pedagógicas visuoespaciais na produção de animações digitais e construção de roteiros.

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     Conforme tratamos de modo mais detido no platô entrecorporeidades, no encontro com estudantes surdos, no atravessamento de nossos corpos em nosso oficinar múltiplo com o corpo em movimento, muitas coisas nos passaram, embora não tenhamos, na ocasião do mestrado, explicitado e problematizado, de forma mais demorada, as práticas corporais que vivíamos. Assim, propomos aqui nesta pesquisaarte retomar o que produzíamos com nossos corpos nas oficinas, a fim de esboçar o problema que busca dar a ver processos de estetização e singularização da vida operados pela arte e educação no encontro entrecorporeidades outras, através da produção de oficinas dança, corpo e movimento em uma escola pública do município de Niterói, com estudantes surdos. Provocados, inicialmente, pelas perguntas: Como estudantes surdos e pessoas chamadas com deficiência na escola se produzem,  inventam-se em sua corporeidade e se de(trans)formam a despeito dos padrões de normalidade que organizam majoritariamente nossa sociedade? O que seriam os tais processos de estetização da vida? Como se forjam processos de singularização que produzem a vida de outros modos nas fugas ao que está posto para os corpos surdos e ditos deficientes? Poderíamos pensar o dançar, o gaguejar e o rabiscar como gestos possíveis a produzir devires no espaço escolar com estudantes surdos, criando fissuras e inventando a vida? Em alguma medida o dançar, o rabiscar e o gaguejar com os corpos em sua potência nos dão elementos para problematizar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. uma como uma obra de arte? É possível pensar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte?

     Na época do mestrado, fui também movida – mo-vida, comovida, Como-Vida! – por outros encontros. Tenho produzido minha existência como bailArina a compor em todos os lugares que habito um corpo que dança, na escola, no mestrado, na vida. 
     Ainda em 2018, encontro a Cia Holos de Dança e Teatro Inclusivo. Uma companhia que fabrica um trabalho pujante de arte com corpos em sua potência, todo e qual-QUER corpo. Os bailarinos possuem modos outros de se expressar, de se relacionar com o mundo e de se locomover, em especial, sobre rodas... Meu corpo, que já dançava em Libras , no mestrado passou também a dançar sobre rodas. Naquele momento, lá no fundo, nutria em mim ideias iniciais de, em algum momento, pesquisarescrever também com dança. Uma ideia que, a princípio, guardo enquanto outras coisas acontecem. 

     Em 2019, realizei um sonho duplo: fui convocada em mais um concurso, desta vez para o cargo de professora de apoio especializado em Niterói, trabalhando na EJA para atuar com adultos diagnosticados com alguma deficiência. Ao mesmo tempo, abriu-se uma oportunidade de trabalhar na Sala de Recursos Multifuncionais de minha escola na Educação Infantil, atuando de modo mais direto com crianças que, desde um discurso medicalizante, são chamadas pessoas com deficiência, a maior parte com diagnóstico de autismo. 
Em nosso Coletivo, costumamos utilizar termos como “pessoa chamada com deficiência” e “ditos especiais”, entendendo que as pessoas e suas condições de vida são marcadas pela diferença, afirmando a existência de variadas condições de ser e estar no mundo. Não são os sujeitos que se denominam “deficientes”, “especiais”, ou outro, mas são nomeados assim, em especial, pelos discursos médicos e jurídicos que predominam em nossa sociedade.
     Mo-Vida pelos encontros com estudantes diagnosticados com autismo, e pelos modos como fomos produzindo no enlace de nossos corpos uma língua nossa,  no toque, nos atravessamentos de estar juntos, fazendo coisas juntos , comecei a sonhar com um projeto de doutoramento. Imaginava escrever um projeto repleto de intenções a partir do trabalho que produzíamos juntos, no encontro entrecorpos que se afetam e se enlaçam na Sala de Recursos de uma escola no município de Niterói-RJ. 
     Mas, como vocês bem sabem, minhas amigas, havia uma pedra no meio do caminho que bagunçou a vida de todas nós: o víRus. 
     Em casa, o lápis na mão não escrevia... Por todo lado, notícias e mais notícias de morte... meu corpo queimava... Eu tentava trabalhar, tentava estudar, tentava ler, escrever...mas, só pensava em minhas avós. 
     E a cabeça doía... 
     Até colapsar!

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“Cidinha Livre” é o nome de um programa de Rádio AM e FM na Tupi apresentado pela jornalista e radialista Cidinha Campos de segunda à sexta-feira.

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Final de abril de 2020… As ruas estão vazias, todas as lojas fechadas. Álcool, máscara, cabelo preso, sapato fechado. Na cabeça, mil ruminações... pulsava o MEDO. Ninguém sabe ainda do que isso tudo se trata, mas todos compartilhamos o mesmo sentimento: MEDO. 
Minhas avós... ‘Eu viajaria, eu veria minhas avós, minhas tias avós, nós conversaríamos, veríamos fotos antigas, elas brigariam e eu me sentiria acolhida em meio à atenção, respostas atrevidas e mimos...’ 
 
No meio desse sonho: no Centro da cidade de Niterói (RJ): ruas vazias... Nas poucas pessoas, uma visão estranha. Um lampejo de memória: países orientais e imagens de pessoas distantes usando máscaras... para mim, algo sem sentido... até então. 
Pelas esquinas, um ou outro vendedor ambulante com olhos amedrontados, fugindo da fiscalização. De soslaio, ágeis, sacavam máscaras de suas mochilas, no intento de sobreviver de algum modo: - “máscara 5 reais, apenas 5 reais!”. 
Meu corpo acelerava os passos, precisava sair logo dali. 
Passo por dois homens em situação de rua, que olham com pena para uma senhora de máscara. Um comenta para o outro: “- Ela também!”. O outro exclama, compassivo, à senhora: - “Espero que você fique boa logo!”. A senhora retrai o rosto sem entender e continua em passos acelerados.

(Distração)

NÃO!

Volto a correr... Minha mente alvoroça, entontece... até quase explodir!
Entro rápido em uma farmácia. Precisava perguntar logo ao primeiro funcionário que visse, não havia tempo para ficar procurando nas prateleiras o que precisava. Não tinha o que eu procurava, entro em outra, repito a pergunta. 
A funcionária com sinais diz que é surda. Penso: “-tranquilo!” – Um lampejo de memória: os surdos da Escola Municipal Paulo Freire que tanto me ensinaram. Prontamente pergunto em Libras, mas ela não entende. Pergunto novamente. Nada. Será que ela não sabe Libras? Fico inquieta, esqueço a memória de escola. Inutilmente, gesticulo os lábios…Faço datilologia, com dificuldade ela começa a entender. Fico impaciente. Tento novamente, ela me mostra o que preciso. Pego. Passo no caixa. Pago. “-Não preciso de sacola, obrigada!”. 
Saio para a rua. Tudo vazio. Não tem Uber. Corro meio caminho, chego no ponto de ônibus ainda em dúvida se voltaria de ônibus ou esperaria por um Uber. 
Olho em volta. 
Máscaras. Mais gentes de máscara. 
Minha cabeça gira. 
E então... COLAPSO!

 

E.U.C.O.L.A.P.S.O!


A máscara, a máscara, a máscara! Como não percebi???!!!
E ali no meio da rua transbordo, um rio transborda. Um rio de lágrimas, um rio de MEDO e um rio de vergonha. 
“-Será que ela não sabe Libras?” PREPOTÊNCIA!!!  Quem sou eu para julgar o outro? 
Ela é surda! ELA PRECISA VER! Precisa enxergar.... 
Mas, eu não a vi, eu não a enxerguei... 
A MÁSCARA = LIBRAS.

(Diários rabiscados (sofridos), 23 de abril de 2020)

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O gaguejo, a tRava

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Link Entre 9
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     Nesse dia, final de abril de 2020, parte de mim foi quebRada. Estávamos bem no início da pandemia e ainda não se tinha ideia de como seria lidar com muitas coisas, inclusive com o uso de máscaras na conversa com e entre surdos. Um dos parâmetros da Libras é a expressão facial, fundamental na comunicação e compreensão de vários sinais. Além disso, existem muitos surdos que não fazem uso da Libras, mas que fazem leitura labial e oralizam palavras na comunicação. Em ambos os casos, a máscara se torna uma barreira. Com o passar do tempo, outras estratégias foram criadas para cuidar da saúde e viabilizar a comunicação - o uso de máscaras transparentes em alguns casos e o aprendizado gradativo de conversar em Libras com máscara -, contudo, ainda naquele momento, tudo era puro caos e dúvidas.  
     Em meio a um turbilhão de emoções, repetia meu pedido e não sendo compreendida, fui me angustiando. Esquecendo-me da máscara, em vão me vi gesticulando os lábios e supondo que a atendente da farmácia pudesse ser oralizada, pudesse talvez não saber Libras ‘muito bem’... tudo em vão, e mais confusa e ansiosa fui ficando...   Apreensiva em me proteger, com medo e com pressa não dei conta da barreira que se colocava entre nós. Barreira com a qual nenhuma de nós ainda sabia lidar: a máscara. 
          Barreira/proteção: paradoxal experiência. 
     Entrave/cuidado. 
     Barreira/possibilidade de manter a vida.
     Distância/possibilidade de produzir aproximações.

 

 

 


     Para mim, ainda é difícil falar do período que se seguiu, o tanto de coisas que aconteceram, o como vivi durante um tempo, apenas sobrevivendo como um zumbi, ou talvez, como Amaranta Úrsula na varanda a tecer e destecer eternamente sua mortalha, numa tentativa, talvez, de sustentar algum possível da vida enquanto essa passa. 
     Dias depois do ocorrido, estive conversando com uma amiga surda por vídeo, o gaguejo era palpável e frustrante... algo em mim não consegue, não conseguia... meu corpo ainda não conseguia falar só por aquela tela, por aquela distância... o remoto provocando mais rusgas e medos... depois desse dia nos falamos pouco, e por texto... me fechei, para a Libras, para a dança... para muita coisa.

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MAS, POR QUE VOCÊ ABANDONA OS SURDOS?

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Em meio a um projeto incipiente de doutoramento e às rusgas que encontrava para seguir com ele devido à limitação da presente pandemia, Ane, minha orientadora pergunta: MAS, POR QUE VOCÊ ABANDONA OS SURDOS? A pergunta me assusta. Não posso dar uma resposta imediatamente, essa pergunta mexe de um modo que ainda não sei responder com palavras. É um terreno rugoso demais!
Precisarei de algumas voltas, respiros, catar algumas palavras e tentar ir contando. 
Alguns dias... 
Talvez mais algum tempo.


(Diários Rabiscados, 28 de abril de 2021)

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Em meu corpo a Libras é potência de vida. “A Libras pra mim é movimento, imagem, desenho...amo desenhar mãos...o movimento delas, seus ângulos, suas formas ...me saltam aos olhos. Libras para mim

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é Língua, gramática, cultura e também arte, movimento, dança, desenho, espaço, teatro, visual, físico...pra mim... Ar que movimenta a Vida!” 
A Libras é, em meu corpo, uma língua outra, me relaciono com ela na condição de estrangeira, como uma estrangeira que aprende, tateia e que, no contato físico, no téte-à-téte com os estudantes surdos, versa, briga, gargalha, aprende e conversa, mesmo quando não entende algum sinal. Diante da máscara me vi, por um tempo, paralisada. Diante da tela também.

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     Na relação com outra língua há rusgas, tateios, gaguejos. O gaguejo expõe nossa fragilidade, põe em xeque nossas certezas, nos confronta a pensar a respeito de nós mesmos. Entesta supostas certezas de uma professorapesquisadora. Diante da incerteza e do medo, por vezes recuamos. Retrocedo diante do víRus, diante da gagueira. 
     “Temos aprendido a frear a perplexidade diante das coisas, despistar os estranhamentos. Evitamos qualquer situação que nos arranquem desse lugar estável no mundo que acreditamos possuir. Sequer chegamos à beira de nossos abismos para dar uma simples espiadinha, para pesquisar o medo. Sufocamos nossa intuição, nossa zona de invenção, porque talvez seja arriscado demais lhe dar algum crédito, pode nos arremessar num beco sem saída, que nos force a abrir uma clareira em nós. Resistimos em construir outros universos de referência, preferimos repetir ideias encardidas, artificiais, viciadas, que às vezes podem até passar por novidade. Habitamos uma floresta de signos que murcham diante de nosso comodismo. Não admitimos por eles ser provocados, sequer somos suficientemente fluidos para nos engajarmos afirmativamente nessa rede de paradoxais acontecimentos chamada vida.” 

     Pesquisar habitando um lugar seguro, blindado de abalos e perturbações é como estar fechado para o encontro, é saber de antemão, comprovando certezas e, assim, nomear, catalogar o outro sem se deixar afetar pelo outro. 
     Em nosso Coletivo Diferenças e Alteridades na Educação, temos experimentado cartografar nossas pesquisasescritas. Apostamos na pesquisa como um rizoma, uma produção que se faz em rede , em uma relação que se produz de forma horizontal, com múltiplas conexões na intensidade do presente vivido. Pesquisamosescrevemos acolhendo o tateio, dando a ver as rachaduras, fazendo ouvir as interferências, tentando expressar o indizível, pensar o impensável. “Não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência possível, mas a experiência impossível. Não a experiência trivial, mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade abolindo-se.”  Pois não nos interessa mais continuar sendo as mesmas, ainda que a dúvida nos assole e um por um os castelos de nossas certezas se desfaçam.

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Deleuze e Guattari, 2011. Ampliamos esta pista no platô rizomar.

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Link Gestos 6
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     Um Coletivo de mulheres, um clube-costura, a pesquisar(viver)escrevercosturar no limite da vida... cartografando o que passa, dando a ver o risível e profano.

     Pois nos importa Babel e sua confusão
     Pois nos importa costurar retalhos-mulheres
     Pois nos importa jogar no improviso de viver
     Pois nos importa rabiscar e (sobre)rabiscar ideias titubeantes
     Pois nos importa escreviver uma vida literaturizada
     Pois nos importa reinventar o denegrir, o ensurdecer, o desviar
     Pois nos importa gaguejar, soluçar, balbuciar, murmurar
     Pois nos importa vibrar, confundir, profanar
     Pois nos importa caminhar rabiscando o caminho
     Pois nos importa diferir
     (n)a educação…

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     Entre amigas. 
     ... É que só é possível diferir entre, em uma relação de amizade, isso “é próprio dos amigos” . A amizade como relação de alteridade, como a relação que suporta a diferença e como abertura  . Amizade como um entre de reciprocidade como um lugar de “recognição mútua” .
     “A amizade ultrapassa a ideia de relação fraterna, que acontece entre iguais, mas, ao contrário, é uma relação sem pré-condições, que permite uma abertura para o outro, abertura para as outras formas de existência, para as diferenças. Portanto, falamos aqui da amizade como um exercício político que serve de oposição aos discursos que sugerem uma forma homogeneizada de existências que tendem a excluir as alteridades, desconsiderando as pluralidades e os conflitos.  (...) a amizade permite o convívio com um outro que não expressa à semelhança, ao contrário, nos permite o exercício de aceitar a distância, a diferença como uma condição da amizade.”   

     Entre amigas, em nosso Clube-Costura-Coletivo, “no qual as pesquisadoras-artesãs se reúnem para tecer suas colchas, conversar e partilhar histórias, tecendo suas pesquisas no Programa da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/UERJ, os temas das pesquisas-colchas são colocados em discussão e, juntas, conversamos, selecionamos e escolhemos retalhos, partilhamos saberes, cortamos e remendamos histórias, experiências e angústias, tecemos e trazemos amigas-artesãs-autoras para essa tessitura. E, embora essa seja uma artesania que acontece coletivamente a várias mãos, contamos com a orientação da nossa costureira mestra – a orientadora Anelice Ribetto -  mestra não apenas no sentido etimológico da palavra, mas compreendida aqui como a artesã que orienta o grupo no processo de artesania das tessituras de monografias, dissertações e teses em um encontro chamado Orientação Coletiva (O.C), tradição vinda de outras experiências como os grupos coordenados por Regina Leite Garcia e Célia Linhares na Universidade Federal Fluminense - UFF, e Nilda Alves na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Tudo é novo, mas não no sentido da novidade, senão da atualização de tradições.” 

     Em nosso Coletivo, seja na experiência de estar numa língua outra ou na nossa língua familiar, como cartógrafas, aproximamo-nos do campo “como estrangeiros[as], visitantes de um território que não habitamos” . “Entender para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da transcendência -, nem embaixo – brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. ”
     A atitude na pesquisaescrita para o cartógrafo é de abertura para o encontro. Faz necessário se abrir e nesse processo desestabilizar, desestabilizar-se, produzindo incertezas, tropeços e gaguejos, em um movimento de, como estrangeiras habitando um território desconhecido, seguir arriscando “linhas de fuga para a criação de novos territórios de expressão, possibilidade de fazer corpo com as matérias da língua e dançar com a cadência a que, ao limite, na gagueira, a linguagem nos conduz.”  
     “É sempre em crise que gaguejamos”
,   apostamos aqui no gaguejar como uma possibilidade de criação. Uma criação que exige desterritorializar, e que, muitas vezes, nos deforma e nos quebra. 
     Na ‘quarentena’ – de dois anos, e contando... – quebrei – muitos de nós quebramos. Meu corpo esgotado, deformou, contorceu-se, e em dado momento colapsou, transformando-se em outra coisa. Para sair de onde me encontrava, para viver, para continuar fazendo a vida pulsar foi necessário deformar, destruir o que havia e com o que sobrou criar, cuidando de si e do outro.

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        Algo mudou em meio ao caos... Eu mudei. Voltei-me para dentro, me encasulei,

auscultei e descobri que

sou pura exterioridade.

jeito de sair do chão

movimentando. A tela me

na frente dela era

como. Pegava lápis e

conseguia, os dedos

NaDa. Um extenso tempo

vontade se fez, não feita

mas das conexões

pulsante. Viva o fora!

lentamente, ouvindo

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só tenho o fora, dentro

Não planejei, mas o

(cama) foi me

machucava, ficar horas

torturante. Não sabia

papel, mas não

formigavam... então eu:

de NaDa. Até que a

do nada e não de mim,

exteriores de vida

Recomecei caminhando

música. Sentia choques

por todo corpo, cada

passo era doloroso. Mas

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“e cada coisa que me ocorra eu anoto para fixá-la. Pois quero sentir nas mãos o nervo fremente e vivaz do já e que me reaja esse nervo como buliçosa veia” 

caminhava. Caminhava, somente, caminhava devagar assistindo uma live  , alongando meu corpo enquanto participava de uma reunião; outras vezes, bordava e crochetava enquanto arriscava meu primeiro curso online via Youtube; e sentada dançava, desenhando o engasgo que me sufocava. Um dia, assistindo outra aula no Youtube enquanto varria a casa, algo pulsou! Peguei um pedaço de papel para rabiscar uma ideia, e não parei mais...

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Live é uma transmissão ao vivo de áudio e vídeo na Internet, geralmente feita por meio das redes sociais (...). Usuários podem fazer comentários e deixar curtidas, além de acompanhar as atividades dos demais espectadores. Fonte, acesso em 27/12/22.

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     De um modo que não esperava, meu modo de escrever mudou, completamente, pelas fugas forjadas em meio à pandemia... digo forjadas quase literalmente, com a imagem viva de uma forja incandescente na cabeça... e a dor que provoca só de estar perto, pois sentia como a pele a queimar e a se desfazer. Foi no limite, em meio à crise, sem um desejo planejado, mas como um subterfúgio para continuar vivendo, que desterritorializei no chão que, para mim, sempre pareceu firme:  minha própria língua. Na Libras, estava acostumada a uma aproximação um tanto claudicante, meio vacilante, mas tropeçar em minha própria língua??? Cavar frestas nesse monumento que, como professora, sempre fui defensora, fiscal e administradora? “Conseguir gaguejar em sua própria língua (...) é difícil porque é preciso que haja necessidade de tal gagueira. Ser gago não em sua fala, e sim ser gago da própria linguagem. Ser como um estrangeiro em sua própria língua. Traçar uma linha de fuga.” 
     Como não foi planejado, muitas notas rabiscadas eu perdi pelo caminho, e ainda procuro me achar entre elas. Uma escrita-limite que se compõe por fragmentos catados e rabiscados enquanto a vida pulsa. Não é um jeito inédito de escrever, mas em meu corpo é algo novo. Alguma coisa que venho experimentando, como possibilidade encontrada para suportar o presente: rabiscar palavras, desenhar, bordar o que me passa, onde me passar. Uma escrita fragmentada no interior dela mesma, mas que é pura exterioridade e superfície.

     Como estrangeira na Libras, meu corpo gagueja, titubeia, arrisca e inventa. Não imaginava me perder como estrangeira também em minha própria língua. Na impossibilidade de escrever, desloquei-me. Não se produz deslocamento de modo tranquilo, mas é algo que urge no encontro ético com o pesquisarescrever cartográfico. 

     Coloco-me e ouso perder-me como estrangeira, enquanto uma aposta ética, diante da língua, seja a língua materna,

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seja a língua-sinais que exerce em mim fascínio fazendo(me)-as gaguejar, gritar, sussurrar, balbuciar, inventando talvez outros usos, usos menores na intensidade-limite da língua.

     Na pandemia, impossibilitada de escrever, me vi balbuciando e gaguejando no limite da experiência. Um corpo sufocado que buscava produzir-se de outros modos para continuar a viver, pulsando vida no limite... Na incapacidade de outra coisa fazer – sequer escrever, sequer dançar, sequer caminhar – ao menos esticar as pontas dos dedos e rabiscar. 
     “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se... um processo” , a escrita é um devir minoritário  um “não fingir, não fazer como ou imitar a criança, o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas tornar-se tudo isso, para inventar novas forças ou novas armas.” . O devir-outros, devir-gago, devir-animal, devir-criança, devir-mulher, devir-surdo, apresentam-se como componentes de fuga, como desvios da forma dominante (HOMEM) . Encontram-se frequentemente no meio – entre –, furtam-se à própria formalização, corrompendo a forma e a fôrma, dando a ver possíveis modos outros de vida, por desvios, em pequenas transgressões, escapamentos que anunciam modos outros de viverpesquisarescrever.
     O gaguejo, os rabiscos, as palavrasdançantes, sinalizadas, rabiscadas, tomam vida em meu corpo e me quebram, me tornam frágil e insignificante à forma dominante. Transfigurando(me)se em armas fragmentárias, forças fugidias de uma vida frágil 

em um corpo deformado, “é como na vida. Há na vida uma espécie de falta de jeito, de fragilidade da saúde, de constituição fraca, de gagueira vital que é o charme de alguém.” Essa gagueira faz vibrar outras coisas, incomoda o lugar de descanso, faz do corpo insatisfeito, sempre inacabado, sempre em devir.

     São muitos os rabiscos em fragmentos de papéis e muitos caderninhos. A alguns dou o nome de diários, a outros não dou nome nenhum – são tão múltiplos! Expressam muito da multiplicidade que eu mesma sou. Rabisco coisas que tenho sentido, vivido, ideias, frases que ouvi, imagens que crio. Enquanto vivo – e vivo pelo corpo em movimento, mesmo em

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pausa – vou catando palavras e registrando, ainda tateando e gaguejando... Uma escrita fragmentada, sem ser fragmentária, na intensidade do presente.

     Apego-me aos rabiscos e às palavrasdançantes como um gesto sobre si – sobre mim – como uma equipagem de si, por si mesmo, a fim de me tornar mais livre  - liberdade não em oposição à submissão, mas uma linha de fuga, uma passagem, um desvio.

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     O rabiscar, o gaguejar e o dançar são assumidos aqui como um modo possível de produzir singularização, como uma dobra no presente, como uma linha de fuga que nos permite respirar, suportar o presente sufocante e nos trans(de)formar em outra coisa. Buscamos com Foucault  pistas para pensar o cuidado de si, quando este escreve sobre a antiguidade. Na antiguidade, o homem grego se ocupa

consigo mesmo para produzir formas de viver. Escreve-se sobre si, para si, a fim de produzir um ethos, um gesto de si sobre si, uma equipagem para se tornar mais livre, fazendo do cuidado de si uma terapêutica, uma medicina. Uma prática terapêutica, que difere da prática psicologizante, governante, mas como uma prática ética do sujeito que volta sobre si, para produzir a própria existência de outros modos, para além daquilo que tem sido feito de nós , e “tener alguna autoría en lo que somos” . 

     Relevante colocar que nos esforçamos por afirmar aqui uma ética que se produz numa relação com os outros, não como um exercício individual, mas uma criação singular que se fabrica coletivamente no encontro. A forja de um cuidado de si que se faz a partir de uma relação com o si que se produz na relação com o outro, como nos ensina Foucault “o outro ou outrem é ética e estética da existência […] indispensável na prática de si […]” .
     Assim, seguimos escrevendo por rabiscos, por rascunhos, o tatear, o gaguejar e o dançar, aqui tomados como práticas de escrita singular, como práticas de transformação da verdade em ethos.
     Através de tateios, perseguimos forjando um ethos. Persistimos ensaiando uma pesquisaescrita, com a matéria que nos vem à mão: os cacos catados aqui e ali enquanto caminhamos (com outros): gestos, restos, rabiscos, pedaços de palavras, sinais, retalhos e encontros virtuais perpassados por conexões instáveis. Matéria sempre amorfa, fragmentada, com traços arriscados aqui e ali em folhas de papel, em cadernos e em bordados r(ab)iscando por gaguejos, incrustados no tempo e sempre provisórios. Cada fragmento é um todo em si mesmo, cada qual múltiplo, pois múltiplas são as afetações, compondo um corpo cinestésico e abundante, que se trans(de)forma pelo pesquisarescrever ao rabiscar e catar palavras. Uma pesquisaescrita produzida enquanto o corpo se move, por isso breve, por isso fragmentada. Uma pesquisaescrita constantemente a ensaiar a si própria, tomando formas várias ao bel-prazer dos efeitos e afetos dos encontros – os encontros, sim, apenas eles importam. 

    Em algum momento, talvez, essa rabiscação tenha sido um modo de escrever insPirada pelo encontro com aforismas de Nietzsche  ou Agamben  e um corpo que mal conseguia escrever, ou no encontro com um modo ensaístico qualquer . Talvez. Quem sabe? Mas, suspeito que tudo isso seja apenas um modo de fazer a língua gaguejar, como eu gaguejo – já disse, não sou boa com as palavras. Com a palavra acostumada, pode até ser, mas essa me interessa cada vez menos – alguma coisa que se arrisque ainda meio sem nome... ainda há muito caminho para rabiscar por aqui.

     Talvez o rabiscar seja um modo de fazer as paLavRas dançARem junto com o movImeNTo que provocam em meu corpo ao catá-las. Talvez seja um modo de “levar sempre mais longe as pontas de desterritorialização dos agenciamentos”  escapando do que sufoca, produzindo fugas à palavra certa, à palavra acostumada que já não dá conta do que passa no corpo no presente-limite.
     Fazer a língua gaguejar “é bifurcar sentidos, descobrir a polifonia dos enunciados, as múltiplas forças que constituem sujeitos e objetos, os emudecidos na história, os silêncios nos gritos” . Gaguejar e desCOBRIR palavras dentro das palavras, gaguejar e rabiscarj-UNTAR e se-Parar palavras, gaguejar e criAR palavra na palavra, embarcando “numa linha de fuga, pela multiplicidade de sentidos, escapando ao significante, ao signo (...) é uma dimensão da criação é a própria criação” .  
     Em meio aos gaguejos, na distância de minha avó, começo a catar palavras de mãos dadas com a dela e me trans(de)formo, ao juntar, separar e criAR palavras outras na tentATIVA de dizer o inDIZível que rasgava meu corpo.  Neste momento, rabisco o que havia:
     Como pesquisar na (apesar) Pandemia? O que a Pandemia faz deslocar naquilo que pesquisoescrevo

 

Deslocamento (um outro modo de caminhar?).

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No meio do caminho: um vírus, a distância com os estudantes e um processo seletivo de doutorado.
Doutoramento... a intenção inicial do projeto de pesquisa encontra-se hoje flutuando à deriva sem encontrar borda... (desculpe, amigas, mas vou precisar retomar o prumo antes).
E nesse imbróglio em que me achava professora tão sabida, perco-me em reminiscências... as palavras que antes catava, estão mais sacudidas que nunca... O que me move? Muitas coisas me estimulam e aquelas que me moviam para chegar até aqui continuam a me abalar... mas, um víRus ventou e bagunçou os fragmentos de papéis e minhas palavras catadas. Tenho que recomeçar, e pelo meio, não há outro modo a fazer.

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Muitas coisas me estimulam e aquelas que me moviam para chegar até aqui continuam a me abalar... mas, um víRus ventou e bagunçou os fragmentos de papéis e minhas palavras catadas. Tenho que recomeçar, e pelo meio, não há outro modo a fazer.
     Doutorar e pesquisar e escrever de modo responsável com a vida, com a arte, com o outro, questionando sabimentos precedentes... Pois que talvez estejamos mesmo muito sabidos na educação, por minha vez não tenho escolha a não ser me perder e tentar – na distância – juntar algumas coisas tidas qUaisQUEr como meus achados...
      E sigo em meio a ruídos de uma frequência ruim 
                                       tentando compreender quaLqueR palavra, 
                        e sigo no meio de (des)conexões 
                                                              tentando sustentar QUALquer conversa, 
                               e sigo em imagens congeladas
                                                                tentando colher qualQUER olhar de Miguel.

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Miguel, uma criança diagnosticada com autismo

Hoje, após muitos dias turbulentos, Miguel chegou e ficou bem na escola. Brincamos, experimentamos alguns materiais, almoçamos e de repente: Crise! Uma forte crise começa. O que mudou? Algo mudou? O que aconteceu? Miguel não responde de um modo que eu consiga compreender. Eu não compreendo, não consigo conversar com ele, acalmá-lo. 

Estarrecida percebo: a dificuldade é minha. 
Miguel se debate. Olho para sua mão, está vazia, com esforço lembro: Miguel, na entrada, encontrou perto da goiabeira da escola uma goiaba pequena e preta e passou toda manhã agarrado a ela, uma goiabinha esturricada e seca. Brincou, correu, comeu, fez tudo com ela na mão. E, de repente, ela não está mais lá. Logo em seguida, quando percebe que não tem mais a goiabinha, tudo muda. Inclusive nossa relação.
Desde que chegou haviam passado semanas até que conseguíssemos compreender alguma coisa do que Miguel sentia, do que ele expressava, muitas tentativas sem sucesso, até percebermos algo como a constituição de um primeiro objeto que lhe deu amparo. Era necessário calibrar a atenção, regular a sensibilidade do olhar, estar atenta aos gestos e aprender outras formas de conversar, as formas dele e com ele. Miguel resiste ao toque, mas, parece ao mesmo tempo clamar por algum tipo de contato. Miguel me empurra, se bate, me bate. Mas um dia descobrimos que ele gostava de cócegas na barriga e assim começamos a tecer juntos nosso modo de conversar. Nossas primeiras conversas se dão ao tocar a barriga de Miguel.

 

(Diários Rabiscados, 30 de abril de 2019)

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     Em 2019 e no início de 2020 movida pelos encontros com Miguel e outras crianças com as quais me encontrava na Sala de Recursos – em sua maioria diagnosticadas com autismo –, sensibilizada pelos modos como fomos produzindo com nossos corpos nossa língua, ao nos tocar, ao rodopiar e ao dançar juntos, arrisco escrever meu projeto de doutoramento intitulado “(Trans)formar-se professora de qUaLquER um”. Projeto que no final do ano de 2020 submeti no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais, da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Um projeto que escrevi ainda anestesiada da pandemia, o víRus não aparecia no texto, nem seus efeitos (era difícil falar sobre algo no mesmo momento em que aquilo provocava tanto medo e incertezas). Foi o modo como consegui escrever, talvez na esperança de que a pandemia logo passasse, sem levar tanto em conta as implicações, caso ela não passasse. Um projeto arquitetado em um incômodo real, mas de um real que não existia mais: a conversa de nossos corpos ao se tocarem. Havia sido um ano assolador, foi o possível naquele momento. Mas o projeto não me satisfazia e, desde o momento da submissão até o momento da entrevista, ele foi sendo trans(de)formado e continua sendo... pois é assim que me encontro: em meio a cacos, rabiscando a cada dia o meu dia.
     Quando inicio o processo de doutoramento, em silêncio, perguntas gritam: Quanto tempo a pandemia vai durar? O que podemos produzir juntos, pela tela, à distância com crianças pequenas diagnosticadas com autismo, que falam com seus corpos?  Quanto tempo até eu poder tocar o corpo de Miguel? Ainda que, em algum momento breve, o presencial se faça, como nossos corpos conversarão? Como dançarei com Miguel, Enzo, Isaque, Renan, Samuel, Benício, Enzo, Isaac, Ana Luiza...? Que língua poderemos produzir com rostos pela metade e mãos recolhidas? São crianças tão pequenas!... 
     Como forçar os limites que o tempo presente nos impõem? É necessário preservar a vida, sinto que a angústia move, mas o sofrimento me trava. A raiva move, mas o medo paralisa. 
     E diante da impossibilidade do momento, vocês, minhas amigas, me perguntam e terminam de me que
                          brar, por CompLeto:

“MAS, 
POR QUE 
VOCÊ 
ABANDONA 
OS SURDOS???”

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