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platô
/entrecorporeidades/

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Havia combinado o início desta oficina com a professora surda Renata... 
Renata não chega. Ela faria essa parte tão bem... Contar maestralmente, com sua língua, uma história produzida por surdos... Mas ela não chega. 
Dou início à contação da história que seria o start para a oficina. Em dado momento, Elen e Raquel caem na gargalhada, dizem que o sinal que fiz estava completamente errado, Raquel pega minhas mãos nas suas, mostrando a forma correta.
(Que sinal? É segredo, não contamos para ninguém, combinamos não contar.)
Passamos a alguns jogos, a professora Renata chega e entra na roda brincando, tirando fotos e, vez por outra, intervindo e explicando algo em Libras.
Brincamos de morto-vivo-meio...
Paulina é uma estudante surda que caminha de outras formas, que possui outros modos de estar em pé, sentar e se equilibrar... após a orientação inicial, passa algum tempo balançando o corpo, parece estar pensando em como seguir os comandos da brincadeira... 
Morto-Vivo-Meio... não adianta querer “poupá-la”, ou ajudá-la... um estudante se aproxima para apoiá-la, ela sacode os ombros se desvencilhando e o afasta... quer tentar sozinha. 
A professora Paloma, que atua como guia e intérprete de Hiago, um estudante com surdo-cegueira (aquele que dança funk), vendo-a quase cair, se assusta e corre para ampará-la. Paulina lagartixeando se desvencilha. Quer tentar sozinha. 
Fico observando...
Ela cria seus modos: inclina o corpo para frente, ombro direito mais abaixo, com uma das mãos mais próximas ao chão, arqueia as pernas, pés dobrados para fora... olhamos apreensivos. Hesitamos. Ela parece que vai cair. 
Novamente os comandos: “Morto-vivo-meio”... e não é que... Paulina iça o corpo e abaixa-o, utilizando as mãos e os joelhos de um modo singular... mas ágil!... várias e várias vezes... e a cada movimento, ri. Ri alto! Feliz, orgulhosa e envaidecida mesmo! 
Em seguida, fazemos um círculo. De mãos dadas, temos de passar por nossos corpos um bambolê sem soltar as mãos. Paulina vai criando sua ginga.
No final de cada jogo, ela vibra!
- Consegui!
(...)
Ao fim da tarde, quando chego em casa, minhas costas doem, doem muito...
Olho algumas das fotos que tiramos naquele dia. Em duas delas, eu apareço conversando com eles: Meu rosto e minhas mãos expressivas ligadas a braços que saem de ombros e costas completamente arqueadas, projetando-me para frente, no movimento de todo um corpo que anseia por encontrar.


(Diários rabiscados, maio de 2018. Cardoso, 2019, p.136)

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Uma referência ao primeiro livro de uma orgulhosa menina magrela de 8 anos, lido do início ao fim em suas 63 páginas. “Feliz, orgulhoso e envaidecido mesmo” de Nani, 1987, o ano em que ela nasceu.

/entrecorporeidades/

/encontro/
/entre/
/intermezzo/
/intermezzi/
/meio/
/.../

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/encontro/
/entre/
/intermezzo/
/intermezzi/
/meio/
/.../

Não sou eu ou o outro
Mas algo que rola no meio.
“um efeito ziguezague, algo que passa, ou que se passa entre dois...

alguma coisa que está entre os dois, fora dos dois, e que corre em outra direção” 
“esse ‘entre-dois’ das solidões.” 
Sempre fora e entre.
O que acontece entre o outro e eu, e um livro, e um vírus, e uma pedra, e línguas outras, e surdos, e avós, e afetos, e gaguejos, e rabiscos e, e, e...? 
...uma gagueira...
...uma cacofonia de entres...

Entrecorporeidades múltiplas

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Deleuze e Parnet, 1998, p.14-15.

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Deleuze e Parnet, 1998, p. 17.

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Certa manhã, desço, mais uma vez, para o recreio com a turma e encontro, no pátio, Sara (amiga de Coletivo) e me aproximo, como habitualmente, para dar um ‘Oi’. Percebo que Sara está cercada de adolescentes, estudantes surdos, ouvintes e um estudante com cegueira que estava interessado em aprender Libras e, aparentemente, em conhecer adolescentes surdas também. Sara está ensinando Libras para ele através do tato e apresenta-o a duas meninas surdas que ali estavam. Entre risos e um pouco de timidez, ele é batizado . Uma das meninas dá a ele um sinal que tem a ver com a letra inicial de seu nome e o boné que ele sempre usa, Sara explica que esse sinal é como o nome dele só que em Libras... O trio arrisca conversar um pouco, Sara explica às meninas que para ele compreender o que elas dizem é necessário fazer os sinais nas mãos dele. O toque das mãos gera ainda mais risos entre eles.... Mas eles iniciam uma conversa.... 
e seguem conversando...

(Diários Rabiscados, 25 de maio de 2017. In: Cardoso, 2019, p. 91)

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Nas interações entre os surdos e surdos e pessoas não surdas, cada pessoa é identificada com um sinal, para além de seu nome em português, que recebe como num ‘batismo’, sempre de outra pessoa surda. Esse sinal geralmente tem a ver com alguma característica da pessoa em questão e pode ou não estar relacionado ao seu nome em português.

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     Encontramo-nos corpos múltiplos.
     É necessário corpo para se fazer encontro.
     Encontram-se corpos que-não-veem-apenas-com-os-olhos com corpos que-não-ouvem-apenas-com-os-ouvidos e conversam e criam... entre. Encontram-se corpos que-se-movem-de-outros-modos, com corpos que-sentem-com-outros-sentires e criam... entre.
     Faremos passar por aqui algumas linhas discerníveis ou não, compreensíveis ou não, efeitos que nos atravessam quando nos encontramos para fazer coisas juntos, mesmo na solidão povoada de um diário rabiscado. Algumas dessas linhas bem visíveis, outras nem tanto: é que há coisas que duram o instante em que acontecem... é que há coisas para as quais não há palavras... é que há coisas para as quais não temos suporte... é que há coisas do corpo que não podem ser escritas. 
     Aqui, assumimos como possibilidade: o limite de nossa pesquisaescrita e nossa finitude. 

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/encontros/

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...É que só sabemos o que pode um corpo na sua relação com outros corpos, no encontro entre corpos... rizomando-os, sabe?... O rizoma está sempre no meio, entre as coisas, um emaranhado de linhas a ligar-se de um ponto qualquer a outro também qualquer, em qualquer direção . É que “não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não se compor com outros afectos, com os afectos de um outro corpo” .

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Deleuze e Guatarri, 2011. MP1

Deleuze e Guatarri, 2012b, p.45. MP4

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     “No platô entrecorporeidades em relação à Escola Municipal Paulo Freire (EMPF), você afirma que é ‘a escola do município onde estão concentrados a maior parte dos surdos em idade escolar matriculados na rede de Niterói’. Como alguém que não estuda diretamente a educação de surdos, fiquei me indagando: Por que os surdos estão concentrados nessa escola? Como se organizam as classes bilíngues nesse espaço?” 

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     A Escola Municipal Paulo Freire (EMPF) se apresentou como um lugar de encontros. Um território possível para a produção desta pesquisaescritagaguejada desde o ano de 2017. É a escola do município onde estão concentradas a maior parte dos estudantes surdos em idade escolar matriculados na rede de Niterói, produzindo um ambiente linguístico na organização da educação bilíngue de surdos com classes bilíngues  do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental: duas turmas em 2017; cinco turmas em 2018 (as turmas de 1º ciclo que antes estavam na Escola Municipal Júlia Cortinez foram transferidas em 2018 para a EMPF); três turmas em 2021; quatro turmas em 2022 e 3 turmas em 2023 (colocamos aqui em destaque os anos em que estivemos juntos rabiscando esta pesquisaescrita juntos). Do 6º ao 9º ano a rede do município organiza classes regulares com surdos incluídos, sendo acompanhados por um intérprete e, quando necessário, por um professor de apoio educacional especializado no caso dos estudantes com surdocegueira ou chamados com deficiência múltipla .
A EMPF foi acolhedora desde nossa entrada. Habitava aquele espaço uma colega do nosso Coletivo Diferenças e Alteridade, Sara Busquet, que nos ajudou em nossa entrada. Contamos desde o início com a parceria da gestão e dos professores em todo processo.  


/uma lambida da cachorra/


     Tanto no mestrado como no doutorado, procurei o Núcleo de Estágios (NEST) da Fundação Municipal de Educação (FME), dando entrada nos documentos necessários: cópia do projeto, documentos pessoais, carta de apresentação e carta de aceite da escola. Além disso, buscamos, sempre que possível, convidar os responsáveis dos estudantes para conversarmos sobre a proposta do projeto. Quando não era possível, enviávamos a proposta para casa por meio dos estudantes, nos colocando disponíveis para dirimir qualquer dúvida que surgisse. Nessas conversas, os pais foram informados sobre a pesquisa, e a necessidade de assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e da Autorização de Uso de Imagem e Som. Em 2017, participaram da pesquisa onze estudantes, em 2018, oito estudantes. Em 2021, fizemos uma entrada breve a convite da escola, promovendo algumas atividades com todos os surdos da escola e discutindo com a equipe escolar como se dariam as oficinas em 2022.  Em 2022 e 2023 participaram 21 estudantes (sendo em 2023, 3 estudantes das classes bilíngues e o restante das classes regulares do 6º ao 9º anos). Nos Apêndices, seguem os modelos que usamos nos termos, tanto para os estudantes quanto para os adultos que participaram, professores e equipe escolar envolvida.
 

/uma pausa para comer/

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O art. 60-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96 traz a definição legal, como veremos mais à frente. Este é para nós um conceito caro que tencionamos aqui de diferentes modos ao trazer as narrativas das experiências com os surdos na EMPF.

“O termo deficiência múltipla tem sido utilizado, com frequência, para caracterizar o conjunto de duas ou mais deficiências associadas, de ordem física, sensorial, mental, emocional ou de comportamento social. No entanto, não é o somatório dessas alterações que caracterizam a múltipla deficiência, mas sim o nível de desenvolvimento, as possibilidades funcionais, de comunicação, interação social e de aprendizagem que determinam as necessidades educacionais dessas pessoas.” (BRASIL, 2006, p.11)

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     (...)
     No momento da qualificação de doutoramento, a professora Rosa Malena Carvalho  mexe comigo ao trazer suas questões para o texto de qualificação entre elas: “Por que os surdos estão concentrados nessa escola?” 
     Uma pergunta que me faz desacelerar o passo e voltar... Na intenção de uma pesquisaescrita de doutoramento, havia o desejo também de tratar da organização da educação bilíngue em Niterói, mas nesse movimento, há alguns anos, lidando com os movimentos surdos com a escola e suas lutas, talvez demos algumas coisas como óbvias, ainda que não o sejam. 
     Assim, na companhia daqueles que fazem a educação de surdos de Niterói, da EMPF (a história da educação de surdos da EMPF e do município de Niterói se confundem, como veremos), e com a necessária pergunta de Rosa em minha sacola, quero retomar alguns fios desta grande e misturada meada e contar algumas coisas antes do que eu iria contar a seguir. (A depender da versão que tens em mãos deste grande textorabiscadogaguejado e das escolhas que fará, lerá antes ou depois as linhas a seguir... Faça seu caminho por aqui.)

Prof. Drª Rosa Malena Carvalho da Faculdade de Formação de Professores (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense, que generosamente aceitou fazer parte da banca desta pesquisaescrita.

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Esta semana é o aniversário de Lívia. A professora Wandréia marcou com eles uma ida ao cinema no feriado... 
Interessante fazer encontros fora do ambiente escolar com pares surdos, eles são adolescentes, gostam de sair, e alguns já começam a gozar de certa autonomia para ir a determinados lugares de forma mais autônoma. 
No pátio, sento-me com eles para conversar, e durante a conversa faço algumas perguntas... 
- Alguém na família de vocês é surdo também? 
- Não. 
...Todos os estudantes surdos do 5°ano bilíngue deste ano são filhos de pais ouvintes... 
- Hum... então tem algum lugar que vocês saem e encontram seus amigos surdos?
Alguns estranham essa pergunta. 
Continuo... 
- Conhecem outros surdos fora da escola? 
- Não. 
- Vocês têm muitos amigos surdos aqui na escola? 
-Sim... e fazem o sinal de um por um... Tem a Laís, a Vanessa, o Paulo, que são nossos amigos... 
Alguém de vocês sai para passear com os colegas surdos da escola? 
- Não. 
-Então onde vocês encontram esses colegas? 
- Na escola.
-Só na escola? 
- Sim, respondem... 
Luma revirando os olhos... (a resposta parece óbvia) Dá de ombros, vira as costas e sai andando. 


(Diários rabiscados, maio de 2017)

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     A resposta óbvia.
     Como? Como os estudantes surdos em Niterói aprendem Libras? Onde aprendem Libras? Em que espaço? Com quais gentes?
     Ainda na escola, aprendi que língua é algo coletivo. Não entendia muito bem as implicações disso, mas de uma coisa eu sabia: língua se fazia com gentes, no plural. A língua como “um fenômeno que está além do domínio individual de cada um de nós. Ela não é minha, nem de cada um de vocês, nem de nenhuma outra pessoa considerada individualmente. Ela é produto de uma comunidade, ela é parte do domínio dessa comunidade. O português brasileiro é a língua de uma grande comunidade de pessoas ouvintes, nascidas no Brasil. A LIBRAS é a língua de uma grande comunidade de pessoas surdas nascidas no Brasil. Essas línguas não se limitam a uma ou outra pessoa. Elas nascem e se desenvolvem no âmbito de um grupo social, não no âmbito individual.” 
     Se a Libras é considerada desde 2002  como língua oficial em nosso país, como os surdos a aprendem? Como falam com outras gentes surdas? Se não convivem com outros surdos, como acessam lugares onde se ensinam essa língua? Como têm contato com a Libras?
     No Brasil Cerca de 95% dos surdos nascem em famílias ouvintes falantes de português que desconhecem a língua de sinais.  Esta também é a realidade no município de Niterói. A maior parte dos estudantes surdos atendidos na rede de Niterói vem de famílias ouvintes que não falam fluentemente a Libras ou mesmo a conhecem.  
     Então, em que língua falam os estudantes surdos com os quais nos encontramos na EMPF?

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Viotti, 2008.

Fruto de lutas dos movimentos sociais e disputas temos nos anos 2000 um primeiro grande acontecimento para as comunidades surdas: o reconhecimento da Libras (Língua Brasileira de Sinais) como língua oficial do país, por meio da Lei 10.436/2002, regulamentada pelo Decreto 5.626/2005, que estabelece prerrogativas importantes sobre os direitos dos surdos, a educação na perspectiva bilíngue e a difusão do ensino de Libras.

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Skliar 1998, 1999a; Quadros, 2005; Strobel, 2016; Ribeiro e Silva, 2015; Campello, 2008.

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Meireles & Costa, 2011.

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Fragmentos

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Professora Wandréia: “Voltamos ao presencial faz um mês. Tenho trabalhado com intérpretes em sala. A Verônica (intérprete) senta-se de frente para os alunos que são oralizados, e usando uma máscara transparente, vai reproduzindo oralmente o que eu sinalizo para os demais na aula. Mas já houve momentos em que, mais de uma vez, precisei tomar distância, tirar a máscara e falar com eles.”


(Diários rabiscados, 24 de setembro de 2022)

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Professora (surda) Renata: “Para mim também foi difícil voltar ao presencial. Em casa, eu só conversava em Libras com vocabulário de situações domésticas com meus filhos. Quando voltamos, estranhei também. No início, precisei lembrar uma série de sinais que fazem parte do vocabulário que usamos na escola. Mas juntos, fomos lembrando e conversando”


(Diários rabiscados, 13 de outubro de 2022)

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“Ele nos olha, seus olhos brilham... Eu não tinha entendido um só sinalpalavra!” Entre os dentes, pergunto à Wandréia: “- O que ele disse mesmo?”. Wandréia olha para mim e sorri: “- Não sei, alguma coisa que inventou em casa. Às vezes, eu também não entendo, fique tranquila (meus pensamentos quase palpáveis). A maioria deles vêm de famílias ouvintes e muitos chegam aqui no Ensino Fundamental sem ter passado por escola ou sem ter tido contato com surdos em outros espaços. Em casa, eles criam seus sinais para conversar com seus pais e irmãos. Quando chegam aqui, eles trazem isso com eles e nessa cacofonia de línguas conVERSAM.

(Diários Rabiscados, 05 de setembro de 2017)

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O trio arrisca conversar um pouco, Sara explica às meninas que para ele compreender o que elas dizem é necessário fazer os sinais nas mãos dele (Libras tátil). O toque das mãos gera ainda mais risos entre eles.... Mas eles iniciam uma conversa.... 
e seguem conversando...

(Diários Rabiscados, 25 de maio de 2017)
 

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Por que os surdos estão concentrados nessa escola?
Como os estudantes surdos em Niterói aprendem Libras? Aonde aprendem Libras? Em que espaço? Com que gentes?
Em que língua falam os estudantes surdos com os quais encontramos?

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     Sem intenção de responder e esgotar essas questões, mas movidas por elas gostaria, inicialmente, de pontuar algumas considerações sobre os percursos da educação de surdos que pude discorrer também de outros modos na dissertação mestrado e outros textos  que antecederam este textoteserabiscado.
     As propostas de educação de surdos em nosso país passaram por inúmeras fases. Fases que não simplesmente se sucedem no tempo cronológico, mas que tiveram maior presença em determinadas épocas e que, de certo modo, permanecem vivas até hoje com maior ou menor expressão . Ronice Quadros  em seus estudos, identifica algumas delas nas propostas de educação de surdos no Brasil. Destacamos aqui duas dessas fases que nos atravessam, e que consideramos necessárias para as discussões aqui desenvolvidas: a concepção oralista e o bilinguismo.


...


/Revisito textos guardados/


...


     A primeira grande fase se compõe por propostas da educação oralista, que passaram por diferentes momentos de adoção e/ou negação em nosso país em épocas distintas . Uma fase que não está guardada no passado, mas que ressurge de tempos em tempos a cada avanço tecnológico da medicina com maior ou menor força. 
     A concepção oralista entende o surdo como uma pessoa deficiente, um deficiente auditivo, se funda em uma perspectiva normalizante, que busca a cura e recuperação dos corpos ditos anormais. O oralismo considera o surdo como um ser incompleto, em uma perspectiva clínico-medicalizante, de busca por tratamentos, a fim de torná-los ouvintes . Uma ideologia que sempre esteve associada aos avanços da modernidade, que possuía (possui) métodos precisos, tecnológicos e contava (conta) com sistematização e apoio da ciência, da medicina, da sociedade, dos familiares, de pessoas surdas – representantes dos grandes avanços e sucessos do desenvolvimento médico e tecnológico, os surdos falantes e os que ouvem – especialmente na figura do surdo ‘ciborguizado’ . O oralismo, como ideologia dominante, está para além da escola, imiscui-se em diferentes estratos do corpo social “implica todo um contínuo de senso comum, de estereótipos e de imaginários sociais difundidos em vários níveis das sociedades” .
     Ronice Quadros  também identifica outra grande fase neste processo, na qual nos encontramos em plena produção: a do bilinguismo. O bilinguismo é uma proposta que, dentro da escola, busca proporcionar aos surdos acesso às duas línguas: a língua de sinais como primeira língua (L1) e língua de instrução  e a língua portuguesa (L2)  na modalidade escrita como segunda língua. Esta seria uma base comum do fazer e do pensar em uma educação bilíngue. A partir desta base, o bilinguismo toma muitas formas nas práticas desenvolvidas. 
     O bilinguismo no Brasil faz parte de um percurso recente, marcado por diferentes concepções em disputas. Apenas recentemente, através da Lei 14.191/2021, foi instituída oficialmente a educação bilíngue de surdos como modalidade em nosso país na LDB (Lei 9394/96).   Uma conquista que marca mais um episódio da luta por direitos das comunidades surdas por terem sua língua reconhecida e priorizada no ensino escolar.
     Importante mencionar que as formas que o bilinguismo tem tomado no Brasil ainda estão em produção, e integram posições políticas e ideológicas em que se disputam concepções dominantes ouvintistas, e de grupos de surdos que lutam por terem sua diferença reconhecida. A produção de um projeto bilíngue-bicultural é uma escolha política, filosófica e ideológica: sendo “bicultural porque compreendemos, do ponto de vista ético e político, a importância de afirmar a singularidade surda em seu caráter cultural, linguístico e minoritário” . Ser bilíngue ultrapassa a comunicação em duas línguas, mas está ligado às questões culturais, a concepções político-pedagógicas e à simples ideia do “direito dos sujeitos que possuem uma língua minoritária de serem educados nessa língua” . Skliar  destaca que a educação bilíngue é, ao mesmo tempo, um ponto de partida e um ponto de chegada para os surdos. Um reflexo coerente – talvez o primeiro da história – a reconhecer e valorizar a situação sociolinguística dos surdos.

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Cardoso, 2018, 2019; Ribetto e Cardoso, 2022.

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Quadros, 1997, 2004.

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Quadros, 1997.

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Quadros, 1997, 2004, 2005; Corcini Lopes, 2007; Lobo 2015; Rocha, 2007; Skliar, 1998, 1999; Skliar, 2016;

Corcini Lopes, 2007 e Lunardi, 2002.

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Skliar, 1998, p. 46.

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Quadros, 1997.

Aquele que passou pelas modernas modificações oferecidas pela medicina para poder falar e ouvir, ainda que de modo ‘não convencional’.

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Em uma sala de aula que tem a Libras como língua de instrução, os docentes (professores bilíngues e professores surdos) ministram as aulas diretamente em Libras, sem mediação de intérpretes. Algo importante nos anos iniciais e educação infantil, “ao se considerar a especificidade desta fase educacional, que requer uma maior interação entre professor-aluno, com mediações constantes para a garantia de desenvolvimento tanto da linguagem quanto dos conceitos que permeiam esse processo.” (bortolotti; lodi, 2014) pois “a atividade tradutória ainda é algo muito complexo para as crianças” (Martins, 2016, p. 722).

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Dentro de uma concepção socioantropológica da surdez vista enquanto uma diferença os surdos se relacionam com a língua de sinais como sua língua materna, por isso sua primeira língua (L1). E com a língua portuguesa, na modalidade escrita, como sua segunda língua (L2).

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Recentemente através da Lei 14.191/2021 (Brasil, 2021), que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) foi instituída oficialmente a educação bilíngue de surdos como modalidade em nosso país.  O artigo 60A a define como: “modalidade de educação escolar oferecida em Língua Brasileira de Sinais (Libras), como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos.” A Lei 14.191/2021 define o em linhas gerais o que se entende por educação bilíngue de surdos, o público-alvo, o ambiente linguístico e ainda que “a oferta de educação bilíngue de surdos terá início ao zero ano, na educação infantil, e se estenderá ao longo da vida.” (art 60A, § 2º Brasil, 2021).

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Ribeiro e Janoário, 2019, p.139.

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Skliar, 1998, p. 54.

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Skliar, 1998.

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Link Gestos 5
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E aqui? Quais as escolhas fazemos? Por que estamos todos juntos em um mesmo lugar?


     O projeto de educação de surdos  do município de Niterói tem como premissa a produção de uma proposta de educação de surdos bilíngue e inclusiva desde 2004. As turmas bilíngues, chamadas de grupos bilíngues, são ministradas nos anos iniciais, no 1° Segmento do Ensino Fundamental, e inclusão  dos estudantes surdos, em classes regulares no 2° Segmento do Ensino Fundamental. 
     Na Educação Infantil, o município manteve, durante um tempo, parceira com a APADA (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Audição) para o atendimento das crianças surdas do município na primeira infância através do Programa Criança na Creche . Contudo, a APADA hoje funciona como uma unidade regular de ensino, recebendo todas as crianças independente de diagnóstico. E, embora o Programa Criança da Creche continue, nos últimos anos a APADA não tem recebido matrícula de crianças surdas na primeira infância e as que compõem as classes bilíngues da EMPF atualmente são oriundas de unidades de Educação Infantil da própria rede. 
     Ainda que exista o desejo e a luta da Coordenação de Educação Bilíngue do município pela organização de uma unidade de referência de ensino de Libras na Educação Infantil em nossa cidade, essa ainda não é uma realidade. Assim, o programa de educação bilíngue, que está sob responsabilidade de Robson Souza  desde o ano de 2017, tem buscado identificar as crianças com suspeita de surdez e deficiência auditiva, encaminhando para avaliação e acompanhamentos terapêuticos quando necessário, instruindo as famílias em relação ao ensino da Libras, e encaminhando professores de apoio educacional especializado surdos ou bilíngues para acompanhar os estudantes nas unidades de Educação Infantil e nas unidades que não têm classe bilíngue, contudo, fora das classes bilíngues, isso se dá apenas quando as famílias permitem que seus filhos aprendam Libras. 
     Importante ainda ressaltar que em 2016, nosso município teve seu primeiro concurso para o cargo de professores de apoio educacional especializado. Nos últimos anos, temos vivido uma instabilidade na disponibilidade de professores de apoio na rede, havendo um número insuficiente diante da demanda. Em toda rede, dispomos de apenas 02 intérpretes concursados, 06 professores bilíngues (que são ouvintes) e nenhum professor surdo de Libras. No Apêndice nº1 trazemos com mais detalhes a educação de surdos de Niterói em números atuais. Além disso, nenhum professor surdo ingressou na rede no último concurso, o que temos tido são períodos não contínuos de contratação temporária de profissionais. Acompanhamos as discussões da Diretoria de Educação Especial do município, que organizaram orientações a respeito das adaptações necessárias para que a prova do próximo concurso estivesse em consonância com as demandas linguísticas dos candidatos surdos. No entanto, a despeito da necessidade e das discussões tecidas a prefeitura anunciou um novo concurso para 2024, no qual, surpreendendo a todos, não havia nenhuma vaga para ingresso de profissionais na educação de surdos do município. Assim, seguiremos sem professores surdos, com um número insuficiente de intérpretes na rede e com contratos temporários que se dão de modo precário e descontínuo. 

     Segundo o ‘Programa de Bilinguismo na Rede de Niterói’ , o atendimento dos estudantes surdos privilegia a concentração destes em um mesmo espaço “pela necessidade de se manter grupos de convivência, classes bilíngues, entre surdos para garantir a manutenção da língua e da cultura surda”, com o objetivo de “Incentivar o contato dos alunos Surdos com os ouvintes, porém não deixando de promover o contato dos mesmos com a comunidade Surda local, permitindo, deste modo, a construção da identidade Surda, o desenvolvimento linguístico em LIBRAS e a vivência da Cultura Surda” .  No entanto, as famílias têm a liberdade de escolher matricular seus filhos nas demais escolas da rede, escolhendo escolas mais próximas a sua residência, mesmo que não haja nelas classes bilíngues. Esses estudantes são acompanhados pelo coordenador do Programa de bilinguismo, Robson Souza, e pelo coordenador de Polo Regional da Diretoria da Educação Especial, que fazem visitas regulares às unidades para ver como têm se desenvolvido os processos de ensino e aprendizagem desses estudantes, estes são acompanhados ainda por um professor de apoio bilíngue ou intérprete diretamente em sala de aula (quando as famílias aceitam e reconhecem a Libras como língua de instrução).

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Projeto de Educação Bilíngue/Bicultural para surdos no Município de Niterói, 2004, apud Meireles, 2010; e o Programa de Bilinguismo na Rede de Niterói (2024) disponível aqui.

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Trazemos aqui a palavra “inclusão” no contexto da educação de surdos de Niterói, de acordo com o que traz o projeto deste município, que escolheu organizar a educação de surdos, do 6º ao 9º ano, em classes regulares com a presença de intérpretes de Libras e de professores de apoio educacional especializado, quando necessário. No entanto, esta palavra nos é muito cara e suscita uma série de compreensões por vezes paradoxais e antagônicas. Assim, no platô Gestos  retomamos a palavra “inclusão” problematizando-a no contexto da educação de surdos. 

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Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Audição (APADA-Niterói), uma instituição especializada que atua desde 1969 junto aos surdos, deficientes auditivos e seus familiares. O Programa Criança na Creche faz parte de um projeto voltado para “entidades mantenedoras regularmente constituídas, sem fins lucrativos, que mantenham creches comunitárias no Município de Niterói e que estejam interessadas em firmar convênio com a FME para atendimento de crianças de zero a cinco anos e onze meses, na Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica” (Edital Nº 005/2013 de chamamento público para o programa “Criança na Creche”). 

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Robson Souza é professor bilíngue concursado da rede de Niterói, pai de um jovem surdo, militante da causa surda e ex-colega de mestrado em nosso Programa (PPGEdu da UERJ-FFP). Dissertação disponível aqui. Atualmente doutorando na Universidade Federal Fluminense (UFF) dando continuidade às suas pesquisas na área da educação de surdos. Robson nos cedeu algumas entrevistas desde o período em que estive no mestrado tecendo esta pesquisaescrita, fornecendo documentos e grande parte das informações sobre a organização da educação bilíngue no município que trazemos aqui.

Projeto de Educação Bilíngue/Bicultural para surdos no Município de Niterói, 2004, apud Meireles, 2010, p.180

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Link Gestos 4
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Programa de Bilinguismo na Rede de Niterói (2024). Disponível aqui.

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No início, em 2004, nossa escola atendia alunos da Educação Infantil ao 9° ano.

Não era diretora nessa época ainda, só sou eleita diretora em 2011. 
Iniciamos o trabalho nas classes bilíngues com 20 alunos, divididos em duas turmas com 10 alunos surdos em cada. A partir dessas turmas e com o início do projeto de educação bilíngue da rede (Projeto de Educação Bilíngue/bicultural para alunos surdos no Município de Niterói), a escola começou a ser vista pela comunidade do entorno e também por pais de outros lugares como uma referência no trabalho com surdos. Assim, começamos a atender muitos surdos nos anos que se seguiram. Esses alunos começaram a vir de muitos lugares de Niterói e até de cidades vizinhas, chegamos a ter mais de 60 alunos surdos estudando ao mesmo tempo, distribuídos nos 1° e 2° Segmentos. 
Temos hoje um espaço, que chamamos de espaço bilíngue, onde funcionam as classes bilíngues. Nessas turmas há um professor regente bilíngue, um professor surdo e professores de apoio para atender às necessidades dos estudantes surdos com outras deficiências.
(...)
Nós atendemos crianças do 1° ao 9° ano: 3° e 4° ciclos de manhã e, as turmas menores de 1° e 2° ciclo atendemos à tarde. 
A escolha de ter classes bilíngues de manhã foi para que eles tivessem um contato com os surdos das outras turmas e para ajudar nessa transição, do quinto ano para o sexto, que é difícil para todas as crianças, para eles ainda mais pela questão da língua. No sexto ano, além de serem muitos os professores, não temos um professor bilíngue, os alunos são acompanhados por um intérprete. No contato com os alunos mais velhos, eles crescem muito, em especial em relação à língua. 

Professora Líbia da Silva Soares Busquet 
Ex-diretora Geral na E.M. Paulo Freire 


(Diários rabiscados em conversas, 23 de junho de 2017. In: Cardoso, 2019, p. 87)

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/Um novo texto, um novo achado, muda tudo o que haveria aqui/


     O município de Niterói vem experienciando a educação de surdos compondo ao mesmo tempo, uma política de atendimento às demandas linguísticas e culturais dos estudantes surdos por meio da organização de classes bilíngues nos anos iniciais do Ensino Fundamental e de inclusão (do 6º ao 9º ano de escolaridade), conforme o projeto da rede. Uma trajetória em plena produção que vem ensaiando sua prática, e a produção de suas políticas públicas em um contexto de disputas e reivindicações a respeito da educação de surdos que se quer afirmar, em meio às pressões de produção da mesmidade na ideia de uma escola tradicionalmente hegemônica e homogeneizante. 
      Ao longo dos anos, existe um esforço pela valorização da presença do profissional surdo em sala de aula com os estudantes surdos , embora ainda não tenhamos nenhum professor surdo concursado, mas apenas contratos que não se fazem de modo contínuo. Sobre a presença do professor de Libras, os Referenciais Curriculares de Niterói (2022) trazem que “este deve ser um profissional surdo que (...) pode apresentar sua experiência como pessoa surda e sua forma de ver o mundo a partir de uma ótica desvinculada da ótica da sonoridade para as crianças no ambiente educacional.”  A Libras é assumida como a primeira língua de aprendizagem das crianças surdas e língua de instrução. Do 1º ao 5º ano ensina-se em Libras e não os conteúdos por processo tradutório. Os Referenciais preveem a presença do intérprete de Libras apenas nas aulas extras como Educação Física e Inglês (contudo, nos anos que estive acompanhando o trabalho desenvolvido – 2017 até 2023 – não havia a presença efetiva do intérprete nessas aulas, mas um esforço das professoras dessas matérias por se comunicarem diretamente em Libras com os estudantes). 
     O objetivo das políticas ensaiadas é manter grupos de convivência ao centrar grupos de surdos em determinadas escolas, possibilitando trocas diversas e a aprendizagem da língua entre pares. Os referenciais ainda trazem que “é desejável a extensão do tempo de permanência de alunos surdos na escola para possibilitar o ensino e o reforço de Libras, bem como da Língua Portuguesa escrita como segunda língua” . O desejo por uma temporalidade estendida para os surdos nas classes bilíngues para aprendizagem e consolidação da língua, antes de sua inclusão nas classes regulares inclusivas, ambientes em que a língua de instrução não é a Libras e a lógica é da tradução, é algo em constante disputa. Um desejo cambaleando entre idas e vindas: por vezes cedendo às pressões políticas de correção de fluxo de uma suposta distorção idade/série ao reclassificar estudantes a despeito da consolidação da língua; ou por vezes  conseguindo efetivar projetos de educação em tempo integral (ainda que por períodos curtos e descontínuos), estendendo o horário de permanência dos estudantes na escola, estendendo assim também o tempo de contato com a Libras, língua de instrução em diferentes atividades e propostas. 
     A trajetória da educação de surdos no município de Niterói é marcada por lutas e disputas , no esforço de produção de um projeto bilíngue-bicultural, entre duas línguas Português e Libras, entre experiências culturais várias. A educação de surdos do município ainda carece de maior detalhamento e de uma portaria específica, mas é possível encontrar algumas orientações importantes em alguns documentos oficiais e registros em pesquisas que vêm sendo realizadas nos últimos anos .

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Meirelles, 2011, 2014.

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Niterói, 2022, p. 133-134.

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Niterói, 2022, p.134.

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Meirelles, 2010, 2011, 2014; Cardoso 2019.

Deliberação CME nº 031/2015b; Projeto de Educação Bilíngue/Bicultural para surdos no Município de Niterói, 2004, apud Meireles, 2010; Referenciais Curriculares (2022); O Programa de Bilinguismo na Rede de Niterói (2017)

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Em que língua? 


Dado a qualquer conexão, o rizoma é como


“um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cognativos: não existe língua em si, nem universalidade de linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais”.

 Roubamos a pergunta de Larrosa (2018) no livro Tremores.

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Deleuze e Guattari, 2011, M.P. p.23.

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     Conforme discutimos no platô rizomar, necessário reiterar que afirmamos aqui, nesta pesquisaescrita, a heterogeneidade e multiplicidade existente na experiência da surdez.
     A surdez é uma condição comum aos surdos, que possibilita falar uma língua própria, não única ou homogênea, mas uma língua outra, que, por se dar através da experiência visual, fora do referencial sonoro ouvinte, faz com que os surdos componham, assim, um grupo linguístico minoritário. As línguas de sinais possibilitam a produção de um coletivo, um coletivo que experiencia o mundo de outros modos, modos não centrados em ouvir (apenas) com os ouvidos, modos experienciados marcadamente pela visão e pelo movimento, mas não só.

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Link Rizomar 1

/O corpo sente fome/ 


     Assim, os surdos não compõem um grupo único, mas múltiplo e multifacetado. Nem todos os surdos têm a Libras como primeira língua, nem todos a aceitam, reconhecem ou legitimam. Nem todos os falantes da Libras experienciam essa língua do mesmo modo e no mesmo tempo. A experiência visual, seu primeiro artefato visual  e característica marcante, não é a mesma experiência vivida do mesmo modo para todos os surdos. Há diferentes formas de expressão dessa visualidade. A surdez compõe uma experiência que não comporta movimentos de homogeneização. Os surdos formam um grupo heterogêneo “permeado por muitas diferenças, umas até rejeitadas por outras, alvos de inúmeros preconceitos e disputas intragrupo.” . 

Strobel, 2016.

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Cardoso, 2019, p. 52 (dissertação)

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Perguntam-me: em que língua?


Na língua que produzimos quando estamos juntos.

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     No encontro com os surdos nas classes bilíngues, nisso que afirmamos como educação bilíngue, todos os dias, os estudantes surdos e suas professoras fazem frente a uma educação maior , macropolítica de controle dos corpos, de produção da mesmidade e apagamento da diferença surda. Desde dentro, pois – como diz minha avó – os ventos vêm e vão e, com eles, reformas e gestões educacionais que operam por lógicas normalizantes, ouvintistas e econômicas. Investir em outros modos de educação, na possibilidade de coexistirem diferentes formas de se fazer escola, é caminhar na contramão do controle e das políticas de educação universalizantes  que tudo abarcam, que tudo contém, que produzem mesmidade, unicidade monolíngue e economia de recursos e investimentos.
     É apostar em modos outros de dizer na produção da língua, afirmando a língua de sinais como especificidade linguística e marca da surdez.  Desde o estar juntos na educação de surdos, fazendo coisas juntos  afirmar a Libras como língua de uma minoria surda. Mas também, desde dentro da Libras, como um sistema estruturado, como uma língua maior, não negar modos outros dos corpos em suas trajetórias múltiplas na produção de sua própria língua. Corpos que torcem a Libras, fazendo-a gaguejar, produzindo língua dentro dela mesma, minorando-a. Desde uma produção micropolítica, cavando brechas e encontrando saídas ao oralismo e seu projeto monolíngue de unidade nacional, de correção dos corpos e apagamento da diferença surda , forjando, no encontro com o outro, práticas menores que diferem das franqueadas pelas políticas nacionais ou mesmo as ainda frágeis políticas locais (Niterói-RJ). 

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A educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e da LDB, pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do poder. A educação maior é aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer. A educação maior é aquela dos grandes mapas e projetos (Gallo, 2002, p. 173. Em torno de uma educação menor artigo).

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No platô gestos   ampliamos as discussões em torno das políticas de inclusão de produção da mesmidade e colonização dos corpos.

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No platô gestos   a partir de Skliar (apud Magalhaes, 2020, p. 90) discutimos o que chamamos de três dimensões do estar juntos apresentados pelo autor: estar aí, permanecer junto e fazer coisas juntos.

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Martins, Vanessa, 2016.

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Houve um tempo em que certas coisas ficaram interditadas. Inventaram, de uma hora apara outra, que a escola devia ser Uma Só e Inclusiva. Assim, as coisas precisavam seguir determinada ordem e acontecerem em um mesmo momento, sob um mesmo panóptico. Se não??? Se não arriscava o controle! Afinal é um prédio enorme com mais de mil estudantes correndo para lá e para cá. Não se podia ter duas escolas dentro de uma (como se já não fossem várias). Não é bom haver separação: classes bilíngues e escola regular. Aqui é tudo Inclusão! 


E com isso lá se foram as nossas festas...


Lá se ia nossa Festa Junina. E para todo mundo. Toda escola deveria aguardar a data em que todos celebrariam juntos a Festa Junina. Quando isso seria? Ninguém sabia.
 

De imediato, os rostos murcharam, juntos com estômagos desejosos por guloseimas típicas da festa. 
 

Mas alguém teve uma ideia, que passou a outros, e a outros mais. Faríamos nossa fe(licidade)sta clandestina. Uma lista de comidas típicas, um saco com bandeirinhas escondidas e outro com roupas juninas. Cada uma ficou com uma tarefa: alguém iria digitar o nome das comidas e objetos em português, outro imprimiria os sinais. Dividimos as bebidas e as comidas entre os voluntários, aqueles que comprariam e aqueles que cozinhariam em casa para trazer. A mim coube pesquisar as danças, em especial, a quadrilha, tudo em Libras.
 

No dia escolhido, após a entrada das turmas com as aulas iniciadas e as atenções dispersas, a sala de descanso se transformou com panos de chitas, e bandeirinhas, e comidas e cheiros e cores, saídas de sacolas e mais sacolas. Uma professora trouxe a pipoqueira, a outra, o micro-ondas. Para aquecer nosso estômago, tinha até uma cafeteira trabalhando a todo vapor. Na sala de descanso, apertadinhos, fomos conhecendo os alimentos com seus sinais em Libras. Cada um ia à frente e com as professoras iam conhecendo e experimentando as guloseimas.
 

No final, chegou a hora das danças, mas era impossível dentro da sala apertada. Ousamos ir para o corredor, os outros andares absortos em suas aulas com ocupados inspetores de um lado para o outro. 
 

Uma professora puxa uma sacola com saias e gravatas juninas. Entre gestos e risos nos vestimos. 
 

Mesmo conversando com eles em Libras, português ainda é minha língua de apoio, na energia de orquestrar nossa quadrilha canto em voz alta os passos juntos com os sinais. Além disso, havia trazido uma pequena caixinha de som e coloco uma sequência de músicas tradicionais, pois que meu corpo precisa de música. 
 

E a Festa? Ah, foi uma alegria só! Adolescentes fazendo força para manterem as caras emburradas, tímidos e ao mesmo tempo curiosos, tentando resistir. E os adultos e as crianças animados, se esbaldando em suor do início ao fim! “Olha a cobra!....”
 

Ps.: No mesmo dia, os inspetores descobriram outra festa clandestina na escola (a nossa passou desapercebida, ao menos até o fim do turno). O nome dessa outra festa era: “MatemArraiá”. Uma professora de matemática e seus alunos que resolveram juntar sua matéria com sua festa preferida. 
 

(Diários rabiscados, de um tempo teimoso e ainda presente)

Festa clandestina

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Ouvintismo

Um mundo inventaram
e batizaram como normal:
"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas".
Ouviram tanto que não escutaram?
...
?
olhos secos não escutam.
corpos fechados não escutam.
bocas que só falam não escutam.
mãos que não falam não escutam.
Ouviram do Ipiranga as margens flácidas -
de si mesmos -
o eco de suas próprias vozes,
suas próprias certezas.
Ouviram. Ouviram...
Tantas dores pelos ouvidos:
a negação da possibilidade de escutar.
o mundo
sem eles-canais, eles-carnais
eles-que-mais?
Mundos pelos ouvidos existem
Como existem mundos
que não vêm pelos ouvidos.
Não ou-viram do Ipiranga as margens plácidas.
Não ou-viram do surdo
sua humanidade sua força sua existência.
Ouviram?
Ouviram porque não viram.
Ouvir ver ouvir ver ouvir ver ouvir?
Vir?
Ver?
Viver?
Ou-vi-ver?
(...)
Que vida ouviram?
Ouviram?
Ou viram?
Ver é escutar com os olhos?
Apalpar as intimidades do mundo?
Visualizar a própria existência?
Ver é ser no mundo?
Que mundo?
Quem vê a invisibilização do povo surdo? Quem vê a privação e a exclusão linguísticas? Quem vê a violência?
Quem vê a colonização?
Quem vê?
Viram?
Ou-viram?
Vimos?
Viram o que...?
Viram ouvintistas quando nascem...
nós ouvintes?
Viram?
Viramos...?
Quando perdemos o jeito de escutar visualmente, de conversar com a presença
de nossa existência na língua do outro?
Atravessar uma língua.
Atravessar-se pela língua.
Que língua?
Ouvimos e vimos.
falamos.
queremos falar...
a língua
do colonizador.
Do aluno do filho do pai do amigo do irmão... dele surdo, não.
Não tem valor.
Não ouviram
No Ipiranga
Nem em lugar nenhum.

 

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     Na busca pela produção de um ambiente linguístico de promoção e compartilhamento dos modos de ser surdos e suas vivências, as professorasarteiras do grupo bilíngue sempre buscam promover diferentes situações do cotidiano para serem vivenciadas em Libras por todas as turmas do grupo bilíngue. Eram momentos ricos em que surdos de diferentes idades podiam vivenciar juntos: aniversários, convescotes, jogos, festas, teatro, saídas pelo bairro para conhecer a cidade em Libras, saídas para ir aos Correios postar sua primeira carta, para ir ao cinema, entre outros. 
     Diariamente lutamos pelo atendimento das demandas linguísticas dos nossos estudantes, pela educação bilíngue-bicultural dos surdos em nosso município. Há na educação de surdos de Niterói idas e vindas, um contexto de lutas e disputas sobre os sentidos de ser surdo e de qual educação de surdos queremos. Disputas que se fazem em meio a diferentes concepções de escola, entre as diferentes concepções de educação de surdos e de inclusão , em que concepções oralistas e bilíngues disputam espaço.  Disputas travadas a cada dia, em cada recurso destinado, em cada recurso perdido, a cada mudança de gestão, a cada momento em que pessoas “desavisadas” aligeiradamente buscam impor suas “bem-intencionadas” propostas inclusivas sem se dar ao trabalho de compreender as diferenças que nos compõem.
     Afirmar a escola como múltipla e produzir desde dentro outros modos de escola, modos que fogem à lógica de tudo abarcar, tudo conter e dominar incomoda e ameaça os planos nacionais, as diretrizes educativas em seus projetos monolíngues de normalização pela língua, criando fissuras no que podemos chamar de ouvintismo.

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Ampliamos essa discussão a partir da crônica
“O fantasma da inclusão (de surdos)” no platô Gestos.

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Prof. Dr. Tiago Ribeiro da Universidad Nacional de Rosario- Argentina e do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), que generosamente aceitou fazer parte da banca desta pesquisaescrita.

(Poema oferecido por nosso amigo Tiago Ribeiro  no exame de qualificação destes gaguejos que chamou pesquisaartepoemavida. Poema que oferecemos aqui também.)

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     Durante o mestrado (2017-2019), produzimos uma pesquisaescrita com estudantes surdos em uma escola pública de Niterói movidos pelo problema: Como produzir propostas de ensino que sejam sensíveis às formas singulares de aprender de estudantes surdos, pensando o processo formativo dos surdos, sua educação visual, através de propostas de ensino visuoespaciais na produção de animações digitais? No encontro com estudantes surdos, no atravessamento de nossos corpos, muitas coisas nos passaram, embora não tenhamos, na ocasião do mestrado, explicitado e problematizado de forma mais demorada as práticas corporais que vivíamos. 
     As experiências trazidas e problematizadas nesta pesquisaescritagaguejada pretendem retomar em alguma medida o que produzíamos com nossos corpos nos anos de 2017 a 2018 nas oficinas durante o período do mestrado, ampliando com a narrativa das experiências produzidas a partir do ano de 2021 a fim de forjar nosso problema que busca dar a ver processos de estetização e singularização da vida operados pela arte e educação no encontro entrecorporeidades outras, através da produção de oficinas dança, corpo e movimento em uma escola pública do município de Niterói, com estudantes surdos. Provocados, inicialmente pelas perguntas: Como estudantes surdos e pessoas chamadas com deficiência na escola se produzem, se inventam em sua corporeidade e se de(trans)formam a despeito dos padrões de normalidade que organizam majoritariamente nossa sociedade? O que seriam os tais processos de estetização da vida? Como se forjam processos de singularização que produzem a vida de outros modos nas fugas ao que está posto para os corpos surdos e ditos deficientes? Poderíamos pensar o dançar, o gaguejar e o rabiscar como gestos possíveis a produzir devires no espaço escolar com estudantes surdos criando fissuras e inventando a vida? Em alguma medida o dançar, o rabiscar e o gaguejar com os corpos em sua potência nos dão elementos para problematizar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. uma como uma obra de arte? É possível pensar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte ?


...


/uma insubmissa mexa para traz da orelha/


...


     Entro na Escola Municipal Paulo Freire pelo meio. Em meio a um projeto de educação de surdos em transcurso. 
     Durante a pandemia, conforme trago a partir do diário rabiscado
‘O gaguejo, a tRava’ no platô avóS, em especial no ano de 2020, passo (passamos) por um momento bastante difícil em que me fecho para muitas coisas. Um período de medo, de perda de pessoas amadas. Em meio a uma turbulência de acontecimentos, uma quebra pessoal me fez afastar da Libras, dos surdos e da dança. Um momento de bloqueio e adoecimento, em um tempo que pareceu se arrastar interminavelmente. 
     Apesar desse tempo de morte, precisava continuar vivendo e buscar produzir um pouco de vida. Assim, na impossibilidade de dançar, escrever, sinalizar ou mesmo caminhar, começo a rabiscar, com meu possível, um projeto de doutoramento.
     Em 2020 o projeto que submeti para o curso de doutorado , se apresentava inerte a tudo que estava acontecendo de mais dolorido – talvez um modo como achei de me proteger não considerando a pandemia, abandonando os surdos, a Libras e tudo o que estes provocavam em mim na época.  
     Após minha entrada no programa, em diferentes momentos, sou confrontada por vocês, minhas amigas de Coletivo, quanto ao que eu teimava em negar, ao tentar esconder certas feridas. 
     Assim, rabiscando e gaguejando, faço da escrita desta pesquisaescrita um cuidado e um modo de suportar o presente. “Um trabalho acadêmico, com um corpo dentro, produz saúde e não doença” .
     Em meio a confrontos internos, enfrentamentos pessoais, discussões no Coletivo, e após um dos períodos mais agudos da pandemia , no segundo semestre de 2021, quase dois meses após o retorno presencial das aulas no município, além de retornar presencialmente nas escolas onde estava lotada com minhas duas matrículas, retorno também à escola Paulo Freire a convite de uma professora para produzir uma oficina de dança, corpo e movimento com os estudantes surdos. Nesse momento, encaro de frente o medo de sair de casa para mais uma escola cheia de gentes, gentes com as quais eu conversaria em Libras... e de máscara.


...


/estico a perna dormente,/


...

Vida como obra de arte, conceito que encontro e guardo em conversas com amigos Deleuze, 1992, Foucault, 1995, 2006a e Nietzsche, 1992 e 2021.

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Não me refiro aqui ao projeto instituído da rede e suas intersecções com o arcabouço jurídico-legal nacional, nem mesmo ao Projeto Político Pedagógico da escola. Estes são garantidores de direitos, de financiamento e organização pedagógicas essenciais para que seja possível fazer a educação de surdos com classes bilíngues na EMPF. Estes têm seu lugar e importância,  o projeto da rede já foi explicitado mais acima, contudo não é dele que tratamos nas linhas a seguir. Me refiro mais aos modos como os sujeitos que habitam aquele lugar produzem a educação de surdos, nos modos como vão se inventando e tocam o trabalho no qual acreditam e que vai sendo produzido constantemente no encontro com o outro.

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Em 2019 apresento no processo seletivo ao Programa o projeto de doutoramento intitulado “(Trans)formar-se professora de qUaLquER um”. No platô Avós   discuto diferentes pontos a respeito dos deslocamentos forjados entre o projeto inicial e o que está em tela.

Nina Veiga, 2022. Trecho retirado de sua fala na oficina intitulada “Fiar a escrita: as políticas de narratividade como modo de existir. Exercícios e experimentações entre arte-manual e escrita acadêmica” que aconteceu em 16 de setembro de 2022 na FFP-UERJ.

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Passamos por diferentes momentos na pandemia, que foram chamados de ‘ondas’ para descrever períodos de maior contágio em relação a outros com menor índice de contágio.

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14 de setembro de 2021, a professora Wandréia do grupo bilíngue me chama no WhatsApp.
Em Niterói retornamos ao presencial no dia 02 de agosto.

Um retorno presencial sem vacina, com elevado número de contágios, de mortes e de medo.

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WhatsApp é um aplicativo de troca de mensagens e comunicação em áudio e vídeo pela internet, disponível para smartphones e computadores.

Máscara: PROTEÇÃO e BARREIRA (paradoxal experiência)

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(Costumo ser daquelas pessoas que, havendo um minúsculo desejo escondido em algum lugar de arriscar, diz ‘SIM’. Topa e depois vê como resolve: o medo, os modos, o tempo, e etc.)

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Após a primeira conversa, os dias passam, a data se aproxima e um postergado desabafo e grito de socorro são proferidos via mensagens de áudio:

- Arina: Então, amiga: a máscara. É... a máscara! Estou com receio da máscara. Eu não estou trabalhando com surdos diretamente, de modo presencial, utilizando máscara. No início da pandemia, o contato presencial que tive usando uma máscara foi inclusive desastroso! Eu realmente estou perdida nisso. Ainda não sei como lidar com isso. Preciso de ajuda, por favor...

- Wandréia: voltamos ao presencial faz um mês. Tenho trabalhado com intérpretes em sala por conta disso também. A Verônica (intérprete) senta-se de frente para os alunos que são oralizados, e de máscara transparente vai reproduzindo oralmente o que eu sinalizo para os demais na aula. Mas já houve momentos em que, mais de uma vez, precisei tomar distância, tirar a máscara e falar com eles. Na verdade, Arina, essa questão dos surdos oralizados também é nova para mim, porque em minhas turmas aqui nas classes bilíngues, mesmo sendo comum haver surdos oralizados, estes costumam estar em processo de aprendizagem da Libras, então iam compreendendo a Libras aos poucos. Mas, eu tenho aqui umas máscaras de acrílico que posso higienizar e te emprestar. Na realidade, comprei vários modelos, mas não consegui me adaptar a nenhum. Essas máscaras embaçam muito e confundem a minha visão porque uso óculos... Enfim, houve um dia que quase levei um tombo com as crianças, aí passei a usar a máscara cirúrgica com uma de tecido por cima e pronto. Mas, fica tranquila, você não estará sozinha, eu vou estar contigo e há os intérpretes juntos também para ajudar.

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(Diários rabiscados,

24 de setembro de 2022)

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     Wandréia, sem saber, em seu convite deu o nome da oficina que se tornaria o modo como produziríamos os nossos encontros durante a pesquisaescrita de doutorado, “oficina de dança, corpo e movimento”, oficina que tem tomado muitas formas e sido atravessada por diferentes linhas como conversaremos um pouco mais por aqui. 
     No dia 24 de setembro de 2021, cheguei cedo, experimentei máscara por máscara, preparei o espaço com o material necessário e espalhei vidros de álcool líquido com lenços de papel pelo local. 


/suor escorrendo e máscara embaçando/


     Às 10 horas, me vi diante de um auditório com mais gente do que eu esperava. Não apenas em quantidade. Além dos surdos, professores e intérpretes, as turmas do nono ano também haviam sido convidadas. Nelas, além dos surdos e dos ouvintes, havia também estudantes com cegueira e surdos diagnosticados com outras deficiências. 
     Eu “desenferrujaria” em uma oficina na qual exploraríamos diferentes possibilidades de movimentos com nossos corpos ao jogar e brincar de vários modos na língua visual deles, a Libras... Mas também precisaria fazê-lo oralmente e – apesar do vírus – tocando o corpo de alguns deles (daqueles chamados com cegueira ou baixa visão), mostrando no toque os movimentos que eram percebidos pelos demais visualmente, explicando regras de jogos como: “telefone sem fio em Libras”, sentir a vibração de sons em um tablado de madeira e produzir batidas ritmadas, e outras brincadeiras simples e divertidas, mas nada simples de contar escrevendo. 

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     Quase dois anos sem falar em Libras e me vi novamente no meio da riqueza de encontros que é a EMPF com muitas línguas e coisas ao mesmo tempo. 
     Sentindo-me um tanto zonza, mas não só.

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Entre dedos 

Me foi dado um lugar para habitar 
Sou dada a povoar lugares 
Dada a cheirar, sentir... tocar 
Pontas dos dedos... empoeiradas paredes 

 

Entre a unha do indicador e a ponta do dedo médio 
Vasculhando folhagens de um arvoredo 
Preso fica uma amostra do verde séquito 
Do lugar que se habita em seus enredos 

 

Sou dada a habitar essas paredes rosas 
A ouvir música, seus sons, cheirando 
Encontrar gentes em agitadas prosas 
Encontrar conversas encontrando 

 

Um gesto, 
Um toque, 
Um resto, 
Que sobre. 

 

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     No início das oficinas em 2022, em alguns encontros estamos apenas os estudantes surdos e eu, em outros encontros conto com a participação dos professores do grupo bilíngue. Apenas no segundo semestre, através de um processo de contratação temporária da rede, a escola, enfim, recebe professoras surdas para compor o corpo docente do grupo bilíngue. Entre elas, as professoras Juliana e Renata, esta última, parceira em outros anos de oficinas também (2017 e 2018). Em setembro, nossa pesquisaescrita é também presenteada pela presença de Luísa Anjos, parceira do Coletivo com bolsa de Iniciação Científica da UERJ  que passa a fazer corpo em nossas oficinas, compassando conosco os modos como vamos experimentando nosso oficinar.

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Luísa Anjos é estudante de Letras da FFP/UERJ e bolsista de Iniciação Científica da UERJ no projeto “Impactos/efeitos da FFP/UERJ na formação/atuação dos professores de apoio educacional especializado no município de Niterói: cartografia das experiências de egressos na educação inclusiva do município”, coordenado pela professora Anelice Ribetto. Financiamento: FAPERJ e UERJ.

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Primeiro dia na escola Paulo Freire. Primeira visita às turmas, primeiros encontros. Ô sorte!
Aperto os olhos para ter certeza do rosto que acabo de reconhecer. Entra na sala da professora Wandréia: a primeira surda do país formada no Curso Normal, formada na minha escola, dois anos antes de mim: Renata Silva. Ela não faz ideia de quem eu sou, mas eu me lembro dela. E me lembro da menina magrela que passava os dias à espreita de um primeiro encontro com os surdos e sua língua. Hoje, essa menina, em formas mais arredondadas, reencontra na escola pública uma então colega e professora surda. Renata pegou meu número de celular e me mandou uma mensagem, mas sem internet, ainda não chegou.


(Diários rabiscados, 22 de março de 2017)

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     É para mim um privilégio cada oficina produzida com os surdos com a parceria e companhia das professoras surdas. Intercessoras que me dão as mãos nessa língua com a qual me relaciono na condição de estrangeira. Intercessoras que compõem aqui movimentos que forçam meu pensamento a pensar . No sentido que dá Deleuze (1992), são os intercessores que põem o pensamento em deslocamento, em criação, em movimento. A partir destes é que se criam problemas. Os intercessores podem ser pessoas, objetos, músicas, livros, plantas, animais. Sem eles “não há obra”.
     A presença das professoras surdas no grupo bilíngue traz uma multiplicidade de vivências e experiências extremamente valiosas para as crianças surdas, que veem nessas professoras um indicativo de representatividade linguística e um referencial adulto diferente daquele que comumente têm contato na escola regular: o professor ouvinte. 
     Em todos os espaços e atividades da escola, as professoras Juliana e Renata assumem uma postura completamente implicada com a produção da língua junto com as crianças. Questionam, movimentam, orientam os professores ouvintes e atravessam nossas oficinas enriquecendo ainda mais nossos encontros. Percebem sentires e modos que não me estariam acessíveis apenas a partir de minha experiência como ouvinte falante de Libras.
     “Há que se pressupor a presença de um idioma comum, de um corpo que pode se manifestar de modo livre, com suas diferenças e sentir-se acolhido por um outro que partilha de sua língua e efetiva a manifestação desse corpo que aparece.” O encontro surdo-surdo, o encontro entre Renata, Juliana e os estudantes surdos... modos de ser surdo, sendo produzidos no encontro entre eles...
     Encontro este que muitos surdos, em sua maioria filhos de ouvintes, não têm ou vão buscar mais tarde, já na adolescência e vida adulta. No encontro com outros surdos, a produção da língua, a produção do pensamento para os surdos, através da Libras, se dá em consonância com a experiência visual dos surdos e com produção de sentidos que aumentam a potência da experiência da surdez vivida entre os pares. O encontro surdo-surdo proporciona a produção de suas subjetividades e seus modos de ser surdo, afirmando, no mesmo movimento, a diferença e alteridade surda.  
     Nos processos que temos acompanhado na EMPF, podemos ver, no encontro surdo-surdo, um dentre os muitos modos como “O corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída.”  Entendemos, junto com outros , o encontro surdo-surdo como um bom encontro. Bom e mal assumidos no sentido espinosiano como ‘bom ou mal aquilo que nos é útil ou prejudicial à conservação do nosso ser, isto é, [bom] o que aumenta ou [mal] diminui, favorece ou entrava a nossa potência de agir.” 

/outra lambida da cachorra/

DELEUZE, 1992.

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Martins, 2016, p. 721.

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Raugust, 2017. Skliar, 1998 (Bilinguismo e Biculturalismo), 1999 (Atualidade da educação bilíngue para surdos); e Quadros, 1997 (Educação de Surdos: a aquisição da linguagem), 2005 (O bi do bilinguismo na educação de surdos). Lebedeff, 2017.

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Spinoza, 1983, p.176. Da origem e da natureza das afecções.

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Skliar, 1998, 1999; e Quadros, 1997, 2005.

Spinoza, 1983, p.231. Da servidão humana ou das forças das afecções.

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Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

 

(Manoel)

Difícil Fotografar o Silêncio – Manoel de Barros, 2000. Ensaios Fotográficos. Ed Record – RJ, 2000.

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Vejo apenas um pequeno contorno de seu rosto.
Seu olhar fixo em algum ponto que não consigo distinguir.
Me aproximo, toco em seu braço pedindo que olhe para mim para que possa ver meus sinais aflitos e a expressão de meu rosto.
Ela se vira ainda mais para o lado oposto.
Implacável, fecha os olhos. Não me ouve. 
Afasto. 
Num instante ela cavou entre nós um buraco.
...
Quando não nos querem ouvir, eles fazem isso: simplesmente fecham os olhos. E por que não? Decido dar espaço, volto um passo... alguns instantes passam.
A professora Juliana, completamente envolvida na atividade, corre comigo de uma criança para outra no pátio, orientando em Libras as regras de nosso jogo fotográfico.
Juliana vê Tais, braços cruzados, olhos fechados. Se aproxima por um lado, Taís vira para o outro....
Conversam em uma língua que é só delas, uma miríade de expressões passa entre seus olhos. 
Juliana, obstinada, mete-lhe a câmera entre os dedos, pede que Taís dispare a foto. 
Taís pressiona o botão.

(O tempo para) 

No tempo infinito de um segundo: O peito salta, pelos se arrepiam, pupilas se dilatam, todo corpo vibra e um sorriso indomado toma todo rosto de Taís. No segundo seguinte, o sorriso é rigorosamente reprimido. Mas suas pupilas ainda brilham. Seus olhos não mentem. 
Taís toma a câmera nas mãos e a segura próxima ao peito.

(...)

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Fico sem entender, olho para Juliana - meu pensamento perfeitamente visível. Juliana responde: - “Ela sentiu. Quando apertou o botão, a câmera disparou e ela sentiu a foto sendo tirada”. 
Tais observa o espaço enquanto segura a câmera perto de seu corpo, mas não bate outra foto, ao encontrar o olhar de outro estudante desvia. Parece não estar confortável no pátio. 
Chamo os demais surdos, subimos ao 4º andar, o andar das turmas bilíngues. Os demais dispersam, já haviam registrados várias fotos. Seguindo o jogo corporal que havíamos combinado registram poucas imagens a mais. Os olhos de Tais correm pelas paredes a volta, ergue nas mãos a câmera, registrando avidamente as pinturas das paredes, os cartazes, os quadros de fotos e o que mais tem vontade. Os colegas retornam para a sala, mas nos corredores permanece Taís, como se não houvesse mais ninguém, como se existissem apenas a câmera e ela. Maneja a câmera pelo espaço, a paisagem limitada pelas paredes e corredores, parece infinita. Sente em seu corpo as diferentes vibrações do pequeno objeto em suas mãos ao ligar a câmera, desligar, trocar o modo de disparo, aproximar, afastar e capturar imagens. E assim segue, sozinha e satisfeita consigo mesma.

(...)

Pausa: Sorriso interditado.
Taís, uma adolescente linda que não gosta de sorrir. Quando pequena, após a queda dos dentes de leite, perdeu também boa parte dos dentes definitivos.

(Diários rabiscados 18 de agosto de 2022)

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     Nos encontros com os surdos, dançando, jogando e fazendo coisas juntos, quando estávamos apenas eles e eu, indagava-me: como registrar com imagens se estou completamente envolvida, conversando com as mãos e produzindo junto com eles nossos encontros? Fomos registrando conforme o possível, até que, com familiares e amigos, consegui doações de três câmeras digitais portáteis, câmeras que não são mais fabricadas, mas que eram muito comuns no início dos anos 2000. Levo as câmeras para nossos encontros no intento de sugerir que eles mesmos ficassem responsáveis pelo registro, revezando-se em cada oficina. 
     Quando chego com as câmeras que consegui, um estranhamento: a maior parte deles nunca tinha visto uma câmera digital portátil! Eles são novos, a maior parte criança e alguns adolescentes. Estão acostumados a tirar fotos com aparelhos celulares do tipo smartphone
     Nesse momento nasce a ideia da oficina seguinte: passear pela escola, registrando imagens e conhecendo nossas novas companheiras de oficinas.

/Kevin segurando a câmera corre atrás de Luana/

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“Smartphone é um telefone celular, e significa telefone inteligente, em português, e é um termo de origem inglesa (...) é um celular com tecnologias avançadas, o que inclui programas executados um sistema operacional, equivalente aos computadores.” Fonte.

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     Aparentemente, encontro uma solução para o registro dos nossos encontros. Breve tranquilidade. Outros incômodos e perguntas vêm e me acompanham... Como fotografar os surdos na expressão de sua língua? Uma língua dada ao ar, ao movimento, pertencente ao instante, ao presente no qual é produzida. A palavra que agora é... e já não é. Desfeita em novos gestos a produzir outros sinais... 

     Lembro do querido Manoel e suas coisas inúteis... 
     Como fotografar a língua? 
     Não sabia. 
     Não saberia fazer, dizer como e nem mesmo orientar. 
     Então, silenciosamente, carreguei a pergunta em uma peneira, espalhei por nossas oficinas e nos pusemos a jogar.
     Em uma peneira, sorteariam alguns papéis com sinais em Libras e a escrita em português, e deveriam registrar as fotos seguindo suas pistas: capturar imagens entre nós, caminhando sem parar, ou na ponta dos pés, ou agachados, ou deitados, de costas, com uma parte do corpo que não as mãos e etc. Capturando enquanto se caminha imagens de coisas, de gentes, de vazios, de gestos, de sons...

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     Como fotografar o tempo infinito de um segundo? 

“O peito salta, pelos se arrepiam, pupilas se dilatam, todo corpo vibra e um sorriso indomado toma todo rosto de Taís. No segundo seguinte, o sorriso é rigorosamente reprimido. Mas suas pupilas ainda brilham. Seus olhos não mentem.”

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Mesma oficina, outro grupo: 

Seis estudantes adolescentes, três câmeras e a missão de trabalhar em duplas. Com autonomia, duas duplas passeiam pela escola, consultando os papéis sorteados e produzindo fotografias. A terceira dupla conta com a professora Renata junto orientando. E eu corro de uma dupla para outra acompanhando. 
Bruno, ao seu modo habitual diante do novo, sente-se inseguro e diz ‘não’... aos poucos, com incentivo, começa a participar. 
Judy (uma jovem chamada com deficiência múltipla) sempre muito viva e alegre, topa de cara. Mas, não conseguimos fazê-la parar para explicarmos como a câmera funciona. Tentamos explicar que na máquina que segurava, para que a foto fosse registrada, era necessário ficar pressionando o botão e não apenas apertar rápido. Em vão.  Judy arranca a câmera das mãos de Renata, abana o braço para se desvencilhar dos meus e começa a apontar a câmera em diferentes direções apertando os botões sem sucesso.

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Chega a vez de Bruno tentar novamente, dessa vez precisa agachar para registrar. Resistente, apoia um dos joelhos no chão e captura algumas imagens, enquanto uma inquieta Judy bate os pés e finca as mãos na cintura. 

/Cabô? Cabô! Cabô?... Judy exclama sua palavra repetida/

Novamente a vez da Judy, ela caminha para longe, tentando e tentando ainda sem sucesso... até que ouvimos um grito de comemoração e Judy, em pulos de alegria, festeja e vem nos mostrar na tela a imagem que registrou.
Judy, ao disparar a foto, sentiu em seu corpo o vibrar da câmera quando esta foi registrada. Um vibrar diferente do que estava sentindo até então quando pressionava o botão de modo rápido e sem sucesso. A partir daí, Judy ganhou mundo pelos espaços da escola, abandona sua dupla e não há mais como retirar a câmera de suas mãos. 
Desde esse dia, sempre que me avista, a primeira coisa que Judy fala é o sinal CÂMERA em Libras. Acho que ganhei um novo nome...

(Diários rabiscados 18 de agosto de 2022)

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  Coisas do corpo... sentimos de modos singulares.
     Usei, durante anos, câmeras digitais a tiracolo para registrar momentos cheios de afeto. Ouvia seus zunidos e por eles me guiava no ligar, desligar, disparar, etc. 
     As professoras surdas Renata e Juliana ajudaram a calibrar minha atenção. 
     Taís e Judy me mostraram um outro modo: sentiram no próprio corpo as reverberações da câmera, transformaram-nas em sua própria extensão, em uma comunicação corpo-câmera que não me era possível.
     ...


...Como fotografar o corpo-câmera de Judy e Taís?

 

/No elevador, pressionamos o botão do 4º andar/

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Coisas do corpo... a singularidade surda e suas marcas

- Tema livre.
- Vamos produzir histórias? 
Storyboards distribuídos com espaços para desenho e escrita.  Amanda pega sua folha, separa seus lápis coloridos e começa seu trabalho. Corpo compenetrado em seu desenhar. Abaixo dos espaços para o desenho, há linhas para escrever, em português, o roteiro de sua história. Amanda escolhe lançar mão de frases em português, mas também, nas linhas, escreve termos em inglês, comuns das redes sociais, e uma variedade de emoticons e emogis. 

(Diários rabiscados, 05 de setembro de 2017)

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“- Eu estava na sala de aula. Percebi que uma das minhas estudantes estava brava. Fiquei curioso ao mesmo tempo em que me preocupei. Então pergunto: 
- O que houve? 
Aproximei-me e ela mostrou a tela do telefone. Estava brigando com a namorada. Brigando por mensagens no Whatsapp somente por emoticons e emojis. Sem nenhuma palavra. Nenhuma! Elas conversavam. Brigavam e depois fizeram as pazes. Eu fiquei pasmo!” 


(Trecho escrevivido pela amiga Sheila em conversa com Tiago Ribeiro.

Santos, 2022, p. 106)

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     Modos de ser surdo e viver a surdez... Duas surdas afirmando modos possíveis de conversar. Brincando com a língua, gaguejando e transitando entre elas, dobrando a língua, produzindo língua. 


“el ser sordo [...] no supone lo opuesto -y negativo- del ser oyente, ni el ser ciego el opuesto del ser vidente; son experiencias singulares que constituyen una diferencia específica.” 

     Aqui neste emaranhado de linhas, entendemos a surdez dentro de uma visão sócio-antropológica dentro do campo dos estudos culturais em educação . Historicamente, habitamos um campo de conflitos onde se disputam sentidos sobre surdez e ser surdo com diferentes concepções. Transitando entre concepções clínicas e antropológicas, entendendo, principalmente, a surdez ora como deficiência auditiva, ora como uma experiência visual. 
     Afirmamos os surdos como um grupo múltiplo, heterogêneo e multifacetado . Em nossas oficinas, ensaiamos a produção de encontros em consonância com as singularidades linguísticas dos surdos, distanciando-nos do conceito de identidade ao afirmar a diferença como condição de existência. Uma existência singular: “um cuerpo cuya presencia nos obliga todo el tiempo a una tensión entre el conocimiento y el desconocimiento, a una suerte de atención y disponibilidad a cada instante, a la puesta en práctica de una conversación sin principio ni final” .
     Sustentamos como posição ética, estética e política a compreensão da surdez como uma experiência visual entendida fora do campo da medicalização: a surdez como diferença, como uma marca, como uma experiência visual, como uma invenção, e os surdos como um grupo minoritário múltiplo e multifacetado.


/vasculho entre diários e notas esquecidas/


     A surdez é uma condição comum à maior parte dos surdos, condição que possibilita falar uma língua própria, não única ou homogênea, mas uma língua outra, que, por se dar através da experiência visual, fora do referencial sonoro ouvinte, faz com que os surdos componham, assim, um grupo linguístico minoritário. Pensar nos surdos como um grupo linguístico minoritário é deixar de pensá-los como seres defeituosos e incompletos. É deixá-los falar e não os emudecer com a oralização. Não os invisibilizar com uma língua que não lhes é natural. É afirmar a diferença. É afirmar a língua. É sustentar que essa língua não é mímica, que essa língua é a expressão mais forte de sua experiência, que, como língua, é conhecimento capaz de compartilhar e produzir saberes. 
     No Brasil, chamamos essa língua de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Língua que foi reconhecida pela lei 10.436/2002, mas não é a única língua de sinais presente em nosso país, bem como não é única em sua forma e expressão entre os falantes.
     A língua de sinais compõe uma das marcas da diferença surda. Nosso amigo Skliar,  ajuda-nos a esgarçar a palavra diferença e seus sentidos. Skliar discute a diferença como algo que se dá na relação entre os sujeitos, a diferença como uma “palabra relacional, no de esencias ligadas a sujetos específicos, se pronuncia en el espacio y la distancia que permanece, siempre, entre dos singularidades. Hay diferencia, no se es diferencia.” .
     Skliar entende a diferença não como uma marca corpórea, mas como algo que é produzido na relação, algo que acontece entre pessoas social e politicamente. As diferenças não são melhores nem piores, inferiores ou superiores, as diferenças são apenas diferenças .
     “A diferença como simples diferença, sem fixá-la em identidades nem minimizá-la na diversidade, pressupõe, no caso dos surdos, não mais pensar se eles são ou não diferentes dos ouvintes se eles são ou não diferentes de outros grupos culturais(...) [Contudo] continuar pensando a diferença como marca identitária parece ainda ser importante para o fortalecimento político da comunidade surda.” 
     Afirmar a diferença como algo que se dá na relação entre sujeitos e pensá-la no caso dos surdos como uma marca pode parecer contraditório. Mas, ainda, nesse momento histórico, entendemos ser politicamente necessário assumir a diferença também como uma marca dos surdos, a fim de oferecer resistências frente ao que podemos chamar de invenção da surdez enquanto deficiência e falta , buscando romper com as fronteiras de discursos hegemônicos que se impõem, ao longo da história, sobre o corpo dos sujeitos surdos, delimitando-os e definindo-os conforme os discursos ouvintistas. Nesse sentido, a surdez pode ser entendida como diferença e como marca, para além de uma marca corpórea, uma marca de resistência. Importante “olhar a surdez de outro lugar que não o da deficiência, mas o da diferença cultural. Não nego a falta de audição do corpo surdo, porém desloco meu olhar para o que os próprios surdos dizem de si quando articulados e engajados na luta por seus direitos de se verem e de quererem ser vistos como sujeitos surdos, e não como sujeitos com surdez(...) por isso não concentro minha argumentação na falta de audição, mas na surdez”. 


/um bocejo anuncia o cansaço/


     A surdez, conforme afirma Corcini Lopes,  é uma grande invenção, no sentido de que social e politicamente se constroem olhares e visões sobre os surdos. Surdez como invenção enquanto construção cultural inscrita em diferentes narrativas e campos discursivos: educacional, artístico, clínico, religioso, linguístico, jurídico, filosófico, entre outros. “Culturalmente produzimos o normal, o diferente, o surdo, o deficiente, o desviante, o exótico, o comum...” 


/só mais uma linha/

Skliar. 2000, p. 115.

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“Los Estudios Culturales ven la educación como un proceso cultural de significación, definido por relaciones de poder, concentrando su análisis en los mecanismos, estrategias y políticas de constitución de las identidades sociales, en los esquemas de representación de diferentes grupos y en la dinámica de funcionamiento de artefactos culturales vinculados a la educación.” Skliar, 2000, p.111.

Lebedeff, 2015.

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Skliar, 2016a.

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Skliar, 2017, p. 164.

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Skliar, 2011a, p. 99.

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Skliar, 2015.

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Corcini Lopes, 2007, p.23.

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Corcini Lopes, 2007.

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Corcini Lopes, 2007, p. 09 e 21.

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Corcini Lopes, 2007.

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Corcini Lopes, 2007, p. 08.

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     Se historicamente a surdez foi inventada como deficiência e falta, também podemos inventá-la de outros modos: 
     “Los sordos constituyen una diferencia política (...) la sordera no es una cuestión de audiología sino de epistemología. Esta definición nos lleva a problematizar la normalidad oyente: en vez de entender la sordera como una exclusión en el mundo del silencio, definirla como una experiencia visual; en vez de representarla a través de un formato médico y terapéutico, hacerlo por medio de concepciones sociales, políticas y antropológicas; en vez de someterlos a la etiqueta de deficientes del lenguaje, comprenderlos como formando parte de una minoría lingüística; en vez de afirmar que son deficientes, decir que están localizados en el discurso de la deficiencia. De esta forma, se estaría desoyentizando la sordera, es decir, denunciando las prácticas colonialistas de los oyentes sobre los sordos, sobre su lengua y sus comunidades”. 

 

/Pronto. Te encontro amanhã/

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Skliar, 2000, p.8.

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Pingando de suor e correndo para conseguir ir para a próxima escola, caminho pelos corredores com as crianças na direção do refeitório, e os deixo com os professores Sandro e Wandréia. Rapidamente, em meia dúzia de frases, preciso resolver com eles um problema que surgiu. 
A conversa estava no fim quando a professora Juliana chega e entra em nossa caminhante roda. Rapidamente, Sandro e Wandréia deixam de responder em português e passam a sinalizar e pausam para que eu continue. Ainda caminhando, começo a reorganizar meus pensamentos, retomo o início do problema. Procuro sinais... Gaguejo. Avanço um pouco mais, mas paro. Não encontro palavras-sinais. Ao redor, olhos expectantes fitos em mim. Não encontro os sinais para dizer o que dizia.  Não dá para dizer o mesmo que eu estava dizendo, 
a língua é outra.

...como fotografar o que não digo?

(Diários rabiscados 19 de setembro de 2022)

Entrecorpos... entrelínguas

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Encontrar entre.
Entre corporeidades... 
entre o quê?
Corpo? 
Corpos? 
Corporeidades...
Mas que corpos são esses?
Que marcas carregam?
Que histórias escrevem?

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     Entrecorporeidades... 
     O Encontro acontece quando algo nos acontece, um desassossego. Encontrar com outros em outras línguas, seja na EMPF ou em outros lugares que venho experimentando ao caminhar por aqui e por ali, constantemente me provoca rusgas e abalos. Encontrar não é romântico. Encontrar não é confortável . É necessário que algo abandone seu lugar para que o encontro se dê. “Pues todo encuentro con otro resulta una bisagra en la vida: verdades o formas de presencia que asombran, conmueven y modifican la vida convencional de la que cada uno y cada una es capaz.”  Encontrar é uma experiência com a alteridade, é a própria experiência-limite “aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade abolindo-se" . Um processo de dessubjetivação, de não continuar sendo o mesmo, de transformar a si por si mesmo. 

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Skliar, Carlos. 2011.

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Skliar, 2017, p. 25.

Pelbart, Peter Pal, 2013. p. 46.

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Skliar, Carlos. 2011.

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corpo/Mente

     Nosso mundo ocidental herdou de Platão a divisão entre corpo e alma . O corpo como parte do mundo dos sentidos, e a alma como parte do mundo das ideias. O corpo material, habitante de um mundo imperfeito e mortal. A alma, parte do mundo ideal por isso perfeita e imortal. 
     As ideias? Elas estariam planando por aí, sempre existiram. Por meio do pensamento, podemos conhecer as ideias e a origem de tudo. Por meio do cuidado do corpo, cuidaríamos da alma e esta poderia então dominar o corpo imperfeito. 
     A alma é considerada como um recheio do corpo também em Aristóteles “o corpo físico é a matéria, enquanto a forma é dada pela alma”  embora para Aristóteles sejam inseparáveis continuam sendo distintas “a alma é aquilo que anima o corpo”. De Descartes, herdamos o penso logo existo, sabemos que existimos enquanto corpo porque habita esse corpo uma alma, uma consciência pensante. 
     Na idade média, as ideias da filosofia antiga de Platão e Aristóteles foram retomadas pelo pensamento cristão, atualizadas dentro das concepções do cristianismo daquele momento: “o corpo passou a ser considerado fonte e lugar do pecado, uma vez que, de acordo com essa tradição, foi por meio do corpo que o ser humano pecou e perdeu o paraíso. À alma, expressão de pureza divina, cabe a função de controlar os desvios do corpo”. 


...


/o telefone fixo toca. É minha avó/


...


     A tradição herdada quebrou o corpo em dois: corpo/cabeça, corpo/mente corpo/recheio(alma). Mas a divisão não parou por aí (conforme discutimos mais detalhadamente no platô riZomar. Na modernidade, a cabeça, ela mesma, também foi dividida em várias partes e continua se ramificando a partir do UNO essência e raiz de todas as coisas. O conhecimento (a mente, o pensamento) seria como uma grande árvore, a “árvore do saber” com raízes profundas que “devem estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estendendo-se assim pelos mais diversos aspectos da realidade” , à medida que cresce, essa árvore produz especializações por todas as direções.  
     O corpo também foi dividido e individuado, tornado em uma peça menor de uma grande engrenagem fabril industrial. A mente, palco da razão, o corpo, palco da saúde, do controle e da medicalização. O mundo capitalista exige um corpo saudável, útil e eficiente. “os ‘corpos doentes’ não são considerados produtos das condições de vida, mas das condições biológicas (consideradas naturais) e da não competência, capacidade de cada um cuidar de si.”  Para o mundo moderno, impera o corpo do trabalho, o corpo útil, no suposto desvio produz-se o corpo doente, anormal e d(não)eficiente. “o povo doente é sinônimo de povo improdutivo, um impeditivo ‘grave’ para o progresso da nação”.  

/pausa para comer/

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Silvio Gallo é, aqui, parceiro e toma nossa mão nessa empreitada de tensionar a tradição do pensamento ocidental. Gallo, 2008 (Eu, o outro e tantos outros), 2017 (Deleuze & a Educação), 2016 (Filosofia: experiência do pensamento).

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Gallo, 2016, p.106.

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Gallo, 2016, p.106.

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Gallo, 2016, p.106.

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Gallo, 2017, p. 73.

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Rosa, 2012, p.40.

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Rosa, 2012, p.72.

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Corpos Errantes: corposurdos, corposnegros, corpospobres, corposmarcados, corpos "cientifizados", corposclassificadas, corposmedicalizados, corpos tornados deficientes... 
Ouço tantas faltas, veem tantos anormais, observamos tantos diferentes, vê-se tanta [d]eficiência, contemplam tantos anormais. O que pode aquele que nasceu marcado para ser menos? Qual a potência daquele que nasceu marcado como um [não]eficiente? Ele nasceu para afirmar o Nós. Ele é o outro, nós o NÓS. Ele é o diferente de Nós. Nos espelhamos [n]ele para ver o nosso contRário e assim nos sentirmos inteiros e potentes – ao minarmos a potência do outro, seu DEVIR. Devir, devir, devir... Palavra que ressoa... Palavra que não se alcança... Palavra que mexe, que puxa... O alcançar é para nós? Normais, letrados, brancos, ocidentais, civilizados e aceitos? Ao outro que seja ciborguizado, que tente ser algo parecido coNosco, mas não ainda Nós, entende?... Que seja sua única utopia ser: NÓS/NORMAIS.
E se o outro não estivesse aí? 

(Diários rabiscados, outubro de 2020)

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Skliar, 2003a, capa.

Corpo medicado

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     A modernidade esquartejou o corpo em uma miríade de partes com uma infinda nosografia de defeitos. Historicamente a medicina medicalizou os surdos, moldou-os e marcou-os a partir de um ouvido defeituoso e da fala insuficiente. Suas formas de ser e estar no mundo foram estigmatizadas pela falta, seus corpos domados para se comportarem como ouvintes, suas possibilidades de comunicação e aprendizagem limitados à fala mecânica e mãos cerceadas de movimento. Suas existências “pensadas como pedaços desfeitos. Suas mentes, como obscuras e silenciosas cavernas.” . A alteridade surda, como toda alteridade dita ‘deficiente’, tem sido constantemente inventada, nomeada e excluída. 

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Skliar, 1999, p.28.

     No campo da educação, especificamente na educação especial, impera grande preocupação em incorporar conteúdos e critérios da área médica no fazer e pensar pedagógico. O discurso da medicalização se concentra em uma concepção sobre surdez e sobre a pessoa surda redutora da pessoa surda ao ouvido. Uma preocupação excessiva com a questão do diagnóstico; com as causas patológicas e prevenção da surdez; com o conhecimento do aparelho auditivo em detalhado; com a caracterização dos tipos e níveis de deficiência auditiva; com as técnicas e tecnologias de tratamento e recuperação dos ‘ditos deficientes auditivos’; com o diagnóstico precoce como tentativa de prevenção dos problemas que a falta de comunicação acarretaria ao desenvolvimento psicossocial dos surdos. Nessa perspectiva, o atendimento que o surdo deve receber na escola fica condicionado ao grau de perda da audição, e tem como objetivo a reabilitação e recuperação do sujeito surdo, com referência no sujeito ouvinte como ideal  a fim de alcançar um corpo tido como normal .   


...


     “La medicalización no es un simple discurso de la medicina, relacionado con el progreso inevitable de su ciencia. La medicalización se ha infiltrado de una forma muy sutil en otras disciplinas del conocimiento, gobernándolas, debilitándolas y descaracterizándolas. Existe, es claro, una práctica de medicalización directamente orientada hacia el cuerpo (del) deficiente, pero existe, sobre todo, una medicalización de la vida cotidiana, de la pedagogía, de la escolarización, de la sexualidad. En otras palabras: la medicalización debe ser entendida como una ideología dominante.”  
     O que nos faz pensar, dentro do campo da educação na perspectiva da diferença, sobre a necessidade que sentimos aqui de ensaiar, junto com outros, essa coreografia e em alguma medida arriscar fissurar o modo como a alteridade surda é vista e compreendida, aproximando-nos do campo da surdez, problematizando a normalidade ouvinte e não a alteridade surda, buscando inventar o corpo surdo de outros modos. Pois, se o sentido clínico-medicalizante constitui uma invenção, a concepção sócio-antropológica, desde o campo dos estudos culturais em educação, que compreende a surdez enquanto diferença também o é.

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Lunardi, 2002.

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Corcini Lopes, 2007.

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Skliar, p. 113, 2000.

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...


/o gato pula no teclado/


Plasik0p[q--------------------------[]çl-Qh8    64er’hhhhhhhhhhh

 

 

     Mas que corpo é esse do qual falamos? Que ora dança essas linhas e ora por aqui também se empedra? 
 

...


     O corpo, como fenômeno sócio-histórico-cultural, possui marcas, seu vocabulário gestual carrega as emaranhadas linhas de sua história, cultura e afetos. Nossa amiga Rosa Malena  propõe expandir a noção de corpo biológico com o conceito de corporeidade, entendendo o corpo como produto e produtor de mundo “compreendemos o corpo como conhecimento, linguagem e patrimônio cultural, inserido em contextos que constroem diferentes experiências, processos escolares e condições de vida” . Rosa defende a noção de corporeidade como conhecimento e como uma das possibilidades de ampliação da noção de conhecimento. Critica a fragmentação do conhecimento e o caráter propedêutico das práticas corporais no ambiente escolar, em especial, através da disciplina de Educação Física, que em consonância com a ideia de produção de um corpo saudável, disciplinado, engrenagem adequada ao mundo do trabalho, inscreve na corporeidade: “os gestos e ações ‘perfeitas’ dos esportes; os ritmos de quem não pode ‘perder tempo’; as práticas corporais em prol do vigor físico” ; a prontidão para auxiliar os movimentos finos voltados à escrita; e a produção de momentos de extravasamento das tensões diárias do corpo, a fim de promover períodos de calma e concentração necessários ao estudo da escrita e da leitura em sala de aula (momento este em que o corpo negado deve ser passivo, obediente e disciplinado).

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Carvalho, 2012.

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Carvalho, 2012, p. 19.

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Carvalho, 2012, p.53.

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Carvalho, 2012, p.53.

     Nesta visão fragmentada “o não conseguir aprender é diretamente relacionado com a dificuldade do aluno em relação ao controle do seu corpo, do seu sistema nervoso.” . Nega-se o corpo e, consequentemente, o que ele traz: suas marcas produzidas socio-historicamente. 


...


/começou o baile aqui do lado, a noite será na batida do funk/


...


     O corpo, com suas marcas, compõe uma multiplicidade infinita de possibilidades. Pensar a corporeidade como conhecimento é pensá-la “como acontecimento do corpo, com a qual se experimenta o mundo, a vida, como um exercício de autonomia e liberdade” . Assim, as práticas sócio-culturais inscritas no corpo dos estudantes sinalizam aprendizagens aprendidas e recriadas: o samba, o hip-hop, as batalhas de passinho, os jogos praticados e o funk dançado por Hiago, estudante surdocego que atravessa nossos encontros na EMPF, são produzidas como conhecimento.

 

“A corporeidade, neste percurso, pode se constituir em uma das possibilidades de ampliarmos a noção de conhecimento, assim como os sentidos que damos à condição humana e aos processos educacionais – aqui afirmados como lugares de encontros e criação/invenção de novas possibilidades.” 

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Carvalho, 2012, p. 61.

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Carvalho, 2012, p. 100.

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Carvalho, 2012, p.20.

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     Novamente: Que corpo é esse do qual falamos? Que ora dança essas linhas e ora por aqui também se empedra? 

     Encontramo-nos nos corpos múltiplos. É necessário corpo para se fazer encontro. Nessa pista, encontram-se corpos que-não-veem-apenas-com-os-olhos com corpos que-não-ouvem-apenas-com-os-ouvidos e conversam e criam... entre. Encontram-se corpos que-se-movem-de-outros-modos, com corpos que-sentem-com-outros-sentires e criam... entre. 
     Falamos aqui de corpos, corpos produzidos. 
    O corpo é pura produção: corposgente, corpospedra, corpostexto, corposcheiro... 

    Não estamos discutindo corpo físico, orgânico... apenas – embora tenhamos a todo instante que nos esforçar para tomar consciência da herança moderna do UNO em nossa cabeça, hierarquia e dicotomia que nos compõe – na tentativa de expor as marcas inscritas em nós,

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ao acompanhar e explicitar por onde passam suas linhas. Falamos aqui de um corpo expandido, esgarçado, estirado para além do corpo físico e material que tradicionalmente a ciência moderna dicotomizou com a alma/mente.

...


Corpo/alma
Cabeça/corpo
Mente/corpo
Alma-recheio/corpo


...


     Retomemos a tradição herdada por nós: corpo, matéria imperfeita e pecaminosa; alma/mente eterna cuja função é dominar o corpo imperfeito. A ideia de corpo inicia uma mudança não dualista com Espinosa no século XVII. Contrariando uma tradição de quase dois mil anos, Espinosa defende uma ideia não dicotômica do ser humano afirmando corpo e mente como uma mesma coisa: “ele nega que a mente prevaleça sobre o corpo. Como um e outro são a mesma coisa, nem o corpo pode obrigar a mente a pensar, nem a mente pode forçar o corpo a agir. Quando pensamos, o fazemos na condição de corpo-mente; quando nos movimentamos, também o fazemos na condição de corpo-mente.”  

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Gallo, 2016, p. 107.

...


/o telefone toca, é minha avó/


...


     A tradição herdada considera o corpo apenas uma matéria imperfeita e mortal, controlada por uma alma imaterial perfeita e eterna. Diante disso, Espinosa defende que até então ninguém havia conseguido dizer do corpo. Dizer do que ele é capaz, do que pode e do que não pode:


“Ninguém, na verdade, até ao presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até ao presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma. Efetivamente, ninguém, até ao presente, conheceu tão acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar todas as suas funções, para já não falar do que se observa frequentes vezes nos animais e que ultrapassa de longe a sagacidade humana, nem do que fazem muitas vezes os sonâmbulos durante o sono, e que não ousariam fazer no estado de vigília. Isso mostra suficientemente que o corpo, só pelas leis da sua natureza, pode muitas coisas que causam o espanto à própria alma.”  

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Spinoza, 1983, p. 178.

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Relembremos o primeiro diário rabiscado deste platô:

Paulina é uma estudante surda que caminha de outras formas, que possui outros modos de estar em pé, sentar e se equilibrar... passa algum tempo balançando o corpo, parece estar pensando em como seguir os comandos da brincadeira... 
Morto-Vivo-Meio...
não adianta querer “poupá-la”, ou ajudá-la... um colega se aproxima para apoiá-la, ela sacode os ombros e o afasta... 
A professora Paloma, que atua como guia e intérprete de Hiago, um estudante com surdo-cegueira (aquele que dança funk), vendo-a quase cair se assusta e corre para ampará-la. Paulina lagartixeando se desvencilha. Quer tentar sozinha. 
Fico observando...
Ela cria seus modos: inclina o corpo para frente, ombro direito mais abaixo, com uma das mãos mais próximas ao chão, arqueia as pernas, pés dobrados para fora... olhamos apreensivos. Hesitamos. Ela parece que vai cair... 
Novamente os comandos: Morto-vivo-meio... e não é que... Paulina iça o corpo e abaixa-o, utilizando as mãos e os joelhos de um modo imprevisível e ágil... várias e várias vezes... e a cada movimento ri... ri alto! Empolgada, feliz, orgulhosa e envaidecida mesmo.


(Diários rabiscados, maio de 2018. Cardoso, 2019, p.136)
 

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     Nos encontramos corpos múltiplos. É necessário corpo para se fazer encontro. Nessa pista, encontram-se corpos que-não-veem-apenas-com-os-olhos com corpos que-não-ouvem-apenas-com-os-ouvidos e conversam e se afetam... entre. Encontram-se corpos que-se-movem-de-outros-modos, com corpos que-sentem-com-outros-sentires e se afetam... entre

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Oficina: dança, corpo e movimento

Coisas:

...câmera digital sempre disponível, quem quiser, como quiser, registre. Linhas, leques gigantes, fitas de ginástica rítmica, swing flags e outros materiais circenses, bolinhas, tecidos, ventiladores, caixa de som, cabos, desenhos, giz branco, água, álcool 70, silêncios, chocalhos, risadas, tombos... e afetos.

 

Pistas:

...plano alto, plano baixo, lento, rápido, direções, em formas ondulares, espaço, esforços, tocando um colega, tocando o próprio corpo, flutuando, para frente, para trás, rolando... (Laban nos ajuda a rasgar o “5, 6, 7, 8” e a pensar em outras possibilidades de mover nossos corpos, “trazendo da experiência de cada um novos arranjos, caminhos e possibilidades para dançar.”)

 

Danças, e linhas, e rabiscos, e:

...Deslocamento dos corpos acompanhando ritmos compassados no tablado de madeira... Deslocamentos sobre o tablado sentindo as vibrações de uma música contemporânea. Com música sobre o tablado. Sem música sobre o tablado.  E sem o tablado, mas também com música (pois que meu corpo pede). Atravessar um espaço   seguindo pistas, desviando de obstáculos. Caminhar tecendo um longo tapete infinito. Dançar como “A Casa Sonolenta”, e se ela ainda dormisse, e fosse acordando? Caminhar com sua música favorita. Dançar de olhos fechados. Destecer o marido da “Moça tecelã”. Subir castelos. Destruir castelos. Vestir as saias de uma clandestina festa junina. Escorregar e cair. Telefone sem fio: que frasecorpo chega do outro lado? Equilibrar-se. Olho no olho, olho no olho. Brincar de espelho. Peso e contrapeso: até onde posso ir apoiando corpo no corpo? Consigo fazer pêndulo? Peguem os gizes com as mãos e os pés, vamos rabiscar as vibrações? Esse sinal... como fazemos? Aquele sinal e mais aquele outro vamos expandir com todo corpo? Variando e variando agora ele virou outra coisa, e dança... “A Moça Tecelã” a gente consegue contar essa história? Como? Tragam as linhas! Elas não nos obedecem. A gente dança elas e elas dançam a gente.

(Diários rabiscados do tempo presente)

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Marques, 2011, p. 280.

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     E como nos encontramos?

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     Na pista da Escola Municipal Paulo Freire, reunimo-nos para experimentar. A experimentação é o que nos conduz. Oficinar para quê? Para estar juntos na educação de surdos, experimentando isso do visual, do gestual... para experimentar o nosso corpo, sabe? Experimentar o corpo para quê? Para o que quiser, para desafiar modos, as formas e as fôrmas, expandindo-nos. Para experimentar o que pode um corpo “e os limites de seu poder de ser afetado”. Para fazer encontros alegres misturando, combinando corpos e aumentando a potência de agir do corpo. 

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Spinoza, 1983.

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Marques, 2011, p. 280.

     “Qual é a estrutura (fábrica) de um corpo? O que pode um corpo? A estrutura de um corpo é a composição da sua relação. O que pode um corpo é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado” . Um corpo se afeta no encontro com outros. A afecção indica a presença de um outro corpo, e o efeito provocado por este “é uma mistura de corpos em que um corpo age sobre o outro e este recebe as relações características do primeiro”

     Para que o afeto se produza é necessário não estar só, é necessário a presença do outro, é necessário multidão. O afeto indica aumento ou diminuição de potência de um corpo. No encontro, os corpos se compõem, se misturam, se modificam. Mas existem também encontros em que os corpos não se compõem e tendem a destruir a própria relação. 
     Para Espinosa, não existe bem e mal e sim o bom e o mal encontro. O mal encontro acontece quando os corpos não se misturam e destroem ou ameaçam destruir “a relação de

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Machado, 2009 p.74.

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Deleuze, 2017, p. 147.

movimento e de repouso que o caracteriza”.  No mau encontro, a potência de agir diminui “porque ela é direcionada para minorar ou anular o efeito destrutivo ou nocivo do outro corpo” . Ao mau encontro, Espinosa chama tristeza. Por sua vez, no bom encontro, há a combinação dos corpos, eles se afetam, se misturam. A este encontro Espinosa chama alegria, pois pela combinação dos corpos, a potência de agir aumenta. 

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Machado, 2009, p.75.

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Machado, 2009, p.78.

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Link Gestos 8

“Até o momento, ninguém, na verdade, determinou o que pode o corpo... Pois ninguém, até o momento, conheceu a estrutura do corpo”.  

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Spinoza, 1983, p.178.

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De que modo forjaríamos nossas oficinas? Mesmo com medo, para mim não restava dúvidas, faria ao meu bom modo de experimentar: com o corpo, o deles e o meu (entrelaçados), só que agora em uma língua outra, em Libras...

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Enxaqueca!
Foi assim que acordei, não consegui dormir direito essa noite...
Hoje é nosso 5° dia de oficinas, um dia diferente...
Enxaqueca?
Como pode? Já fiz isso tantas vezes? As oficinas nas aulas de dança, teatro, em igrejas, com crianças em escolas...
Já faz quase dois meses desde o dia em que, conversando com a professora Wandréia, pensamos na proposta do dia de hoje. Mas, de algum modo, posterguei ao máximo que pude. Conversamos sobre as relações entre os estudantes na turma, as dificuldades que vinham se produzindo no contato com o outro, as mudanças que vivenciavam em seus corpos em crescimento, a timidez de alguns... e assim, montamos a proposta:
Uma oficina de teatro, com jogos teatrais inspirados na “técnica do reflexo”, do artista Oswaldo Montenegro: uma sequência de jogos musicais que exploram, de diferentes modos, a consciência corporal, atenção e a relação no contato com o outro.
Uma prática que para mim se tornou continuidade de meu trabalho (...) Arte e corpo e movimento. (...)
Bruno (estagiário surdo), e Viviam (intérprete) foram importantes intercessores nesse dia, seja brincando junto, incentivando os estudantes, ou me ajudando com algum sinal que ainda não conhecia. Ajudando a pensar no próprio processo de feitura, o oficinar.
(...) aos poucos, o ritmo foi se compassando, risos se ouvindo, corpos se movimentando, se soltando, olhos se mirando, toques se fazendo, relações se produzindo em equipes que precisam trabalhar juntas... fisicamente juntas. (...)
Isso em um momento de grande conflito entre dois colegas. Quando perguntei a Carlos o porquê que ele não podia sentar do lado de Alexandre, Carlos respondia: - “Ele é sujo!”... Pouco adiantou falar e reprimir dizendo que não poderia dizer isso, seja nas oficinas ou em outros momentos de aula. Mas...
Hoje os vi abraçados... E mais de uma vez...
Seria isso um encontro alegre? Uma composição?

(Diários rabiscados, 12 de setembro de 2017. In: Cardoso, 2019, p.61)

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Hoje trabalhamos intensamente, muito mais que a “uma hora” que nos haviam sido reservadas. Mas a professora Wandréia também embarcou e lá fomos nós afetados e nos afetando entre jogos e câmeras. Havia sido uma manhã intensa em que gravamos sequências animadas de pixilation . No início, os estudantes ainda ficaram meio confusos com as orientações: anda/para, mexe a mão/congela/fotografa, sobe mais um pouco/estátua/fotografa... 
Após algumas sequências capturadas, passo as imagens rapidamente por um programa no celular que produz gifs  e que nos dariam uma prévia de como ficaria nossa animação.
Eles se amontoam ao meu redor para ver a tela... No fundo, está Matheus que permanece parado, absorto com o que vê, sem que pudesse impedir, seus olhos transbordam. A prévia termina, as crianças dispersam. Olho para Matheus que rapidamente se vira, enxuga os olhos e fica durante um tempo quieto em um canto da sala.
Até que os jogos recomeçam e ele volta animado.


(Diários rabiscados, 24 de maio de 2018) 

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O Pixilation é uma variante do Stop Motion, que foi se desenvolvendo como um estilo diferente de outros trabalhos em Stop Motion. A principal diferença é o uso de pessoas reais no lugar de bonecos. O ator se torna um tipo de boneco vivo, utilizando os mesmo princípios da animação para exagerar os movimentos e conseguir situações que seriam impossíveis na vida real.” Fonte.

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GIF (Graphics Interchange Format) é um formato de imagem em que é possível criar imagens em movimento. Apesar de possuir a qualidade menor que os demais formatos, o GIF é amplamente utilizado, em redes sociais principalmente, quando é necessário criar uma animação (...) este formato possibilita a compactação de várias cenas, exibindo movimento. Os GIFs não possuem som, as próprias imagens transmitem a mensagem desejada. Fonte.

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     Oficinamos para encontrar corpos.
     Mas como dar a ver isso do risco e do gozo das nossas oficinas?

 

     Risco e gozo...

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Niterói, 17 de outubro de 2022


Quando os estudantes chegaram, hoje os mais velhos, a dinâmica era quase igual à de quinta-feira, porém com o auxílio das vibrações no tablado. Arina pediu que eles andassem e corressem de diferentes formas por todo o tablado no ritmo das vibrações que eles sentiam. Eles gostaram, mas acho que na parte de correr e pular os mais novos ganharam… no momento em que cada um deitava e o resto do grupo batia no tablado ou batia palmas, vi que alguns se emocionaram. Não entendi os sinais, mas acho que talvez tenham escutado algo, ou sentido muito intensamente. Foi lindo de ver quando eles tiravam a venda e abriam os olhos brilhando e às vezes marejados, tentando rapidamente enxugar os olhos ainda sem compreender o que eles próprios haviam sentido.


(Diário de Iniciação Científica de Luisa Anjos)

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na pele da Oficina, não há consertos ou repressões, apenas risco e gozo, potências ou devaneio. Uma nova roupagem se constrói em meio ao caos, um pequeno cosmos transmutado em sonho e expressão de si. 

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Moehleckle, 2015, p. 169.

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     Em alguns momentos, podemos nos dar a ilusão de que em nosso muito preparo conseguimos um ambiente mais ou menos controlado em sala de aula, em outros nos desesperamos, pois a brincadeira vira uma verdadeira bagunça, os estudantes se agitam, alguém cai e se machuca, falta luz, algo quebra... alguém se emociona e ri ou ao contrário chora e se desestabiliza... e ‘não damos conta’
     Nisso do corpo se afetar, não há controle, é sempre um risco. O trabalho com o sensível sempre coloca diante de nós o risco, pois não sabemos como a arte irá nos afetar, até onde nos levará, como iremos reagir... ou mesmo se haverá afetação. Mas, quando há, quando os corpos se misturam, na combinação dos corpos, afetos se produzem, a potência de agir aumenta, ou, ao contrário, diminui e destrói. 

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Spinoza, 1983.

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     Mas como dar a ver isso do risco e do gozo das nossas oficinas?
     Não tem como. 
     Mas arriscamos.
     Não imitando ou representando, mas produzindo por essas linhas em texto e imagens, um modo possível de narrar os efeitos dos encontros de nossos corposjuntos. 
     Então vamos lá:
     Reunimo-nos duas vezes por semana durante cerca de uma hora, um dia com duas turmas, outro dia com outras duas turmas. Antes de cada encontro, há uma grande preparação, uma grande sacola, com diferentes materiais, carregada para lá e para cá, um livro com histórias para inspirar e partilhar, uma lista de jogos, uma partitura corporal aberta com uma coreologia de movimentos  possíveis, que funcionam como pistas, centelha e gatilho para que possamos ir produzindo juntos, formando e desformando nossos corpos em movimento. 
     Além disso, no dia a dia, Luísa (minha parceira de Coletivo) e eu acompanhamos as turmas em diferentes momentos da rotina: em algumas aulas, nos intervalos (nos intervalos sempre, esse é meu lugar preferido, gosto de ser atravessada pelos sons e afetos do chamado ‘recreio’), na hora do almoço, em algum evento, ou outro. Apostamos em um tempo diário que separamos para pararmos em silêncio, um “parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos”  no desejo de viver o que rola, onde rolar, sentindo o fluxo, vivendo e experimentando a EMPF. Também por isso, muitos dos diários rabiscados por aqui ensaiam dizer a respeito de coisas que aconteceram para além das paredes e do tablado reservados para o oficinar, mas de coisas que nos passam entre, quando estamos juntos, seja nos corredores, no refeitório, no pátio, no teclado do computador, no papel rabiscado, nos afetos, e em qualquer espaço entre nós.

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Laban, 1978, 1990.

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Larrosa, 2002, p.24.

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/o gato de novo/


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     Já faz algum tempo (como contamos no platô gaguejos) que em meu corpo, a dança explodiu em muitas outras possibilidades... Faz algum tempo, que venho experimentando o fazer, o jogar e o experimentar o corpo em seus movimentos para além das categorias tradicionais da dança. Venho experimentando, com ajuda de outros, o fruir e o fluir dos corpos disponíveis em sua disponibilidade. Tendo como medida do corpo o próprio corpo e experimentando-o em movimento. 
     Trazemos conosco uma esburacada sacola de pistas que ousamos nos insPirar para produzir juntos outras coisas. Nesta sacola, não seguimos ou buscamos seguir um método, mas carregamos pistas, apenas pistas catadas com outros, com Rudolf Laban , com Oswaldo Montenegro e outros.
     Com Oswaldo, cato (conforme expomos no platô gaguejos) fragmentos da técnica do reflexo, criada por este grande artista, que a partir do jogo teatral, propõe uma série de experimentações com o corpo para o teatro musical, técnica que explorei em minha época de oficinas de teatro com o diretor Caio Ruas Miranda.

Laban, 1978 e 1990; Marques, 2011, Madureira, 2020; Salles e Machado, ano não informado.

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     Com Laban, cato intensidades em sua dança livre, não metrificada, na qual cada corpo dá o tom com as marcas culturais que possui. Laban, em 1928, cria um sistema que tem como base a observação da complexidade do movimento humano em suas ações cotidianas: movimentos executados por um trabalhador na fábrica, o caminhar de alguém na rua, danças locais, observação de pessoas executando tarefas cotidianas. Laban se impressiona com a complexidade e o potencial variacional do movimento do corpo humano. 

     A partir desta observação, propõe uma partitura corporal aberta com uma coreologia de movimentos, um sistema capaz de explorar e potencializar a diversidade de movimentos do corpo: “Sua proposta não se reduz à criação de uma técnica, de um método, de uma gramática ou sintaxe para a dança, mas sim de uma possibilidade de abertura, exploração e análise - buscando, nas unidades mínimas constitucionais de todo e qualquer gesto, a criação de um sistema” .

     Laban compõe um trabalho coletivo, uma chamada dança coral, não apenas com bailarinos, mas em especial, com pessoas comuns. A dança coral produzida a partir da memória corporal dos corpos envolvidos, fabricando um modo como as pessoas pudessem dançar juntas sem fazer, necessariamente, o mesmo passo, mas explorando as mesmas qualidades de movimento.

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Machado, ano não informado, p. 10, vol 3. 

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A Cruz dos Esforços. Fonte: Laban, 1978, p. 126

     Seu Sistema de Análise de Movimento elenca temas como: esforços, voltas, saltos, espaço, trajetórias, extensões, flexões, pausas, tempo. Para Laban, por exemplo, a categoria ‘tempo’ é composta por um tempo não metrificado (ele implode o “5, 6, 7, 8”, contagem convencional dos que trabalham com dança) que pode ou não acontecer com música, “não existe a necessidade de sincronizar o gesto com uma determinada contagem rítmica por compasso. A sincronicidade passa a acontecer onde o gesto é soberano em seu tempo e intenção expressiva - e onde a música, quando presente, se constitui a partir dele.” 
     Utilizamos as categorias estudadas por Laban como pistas na produção de nossas oficinas.  Vale ainda mencionar a Labanotação uma escrita do movimento criada por Laban, que mais tarde (1974) serviria como umas das inspirações para a criação da Sign Writing  (escrita das línguas de sinais) pela bailarina Valerie Sutton.

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Machado, ano não informado, p. 12, vol 4. 

“SignWriting é um sistema que permite ler e escrever qualquer língua de sinais sem a necessidade de tradução para uma língua oral. Ela expressa os movimentos, a forma das mãos, as marcas não-manuais e os pontos de articulação através de símbolos que são combinados para formar um sinal específico da língua de sinais.” Disponível em: <www.libras.com.br/signwriting> Acesso em: 05/07/2023.

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Entrecorporeidades, fraGmentos


     No exame de qualificação, pensamos em um modo possível para a apresentação deste textodançatodorabiscado, um modo que pudesse ser mais coerente com o modo como ensaiamos a escrita aqui. A fila indiana de páginas e capítulos separados incomodam demais a este textorabiscado que se propõe tesedança e ferem seu orgulho. Pensamos, então, em colocar o texto sobre uma mesa, espalhá-lo para poder vê-lo em suas partes todas ao mesmo tempo e, assim, fazer passar as linhas que o conectam em pontos distintos e que o rompem sem aviso, deixando palavras à deriva. 
     Na qualificação entre tentativas e experimentações, encontramos um modo: um modo mesa, taça, solo, platô que rasga a ordem e que nos permitiu, em certa medida, dançar suas linhas, ainda com limites em suas conexões, mas foi o possível naquele momento.

 

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Imagem: Texto de qualificação

     Então... creio que àquela altura, apenas não havia pensado nestas questões de modo direto, ou mais detidamente. A verdade é que fazemos o que fazemos aqui muito ao modo intuitivo também, por acreditar na fabricação de modos coerentes com a dança livre que nos propomos. Com ênfase nos processos criativos e na experimentação, compomos a cada rabisco uma dança livre, não metrificada, na qual cada corpo dá o tom com as marcas culturais que possui e que pode.
     Assim também acontece a entrada dos registros fílmicos e fotográficos por aqui, produzidos enquanto coreografamos a caminhada, rasgando o “5,6,7 e 8” e esgarçando os roteiros, buscam dar a ver não uma estética comprada, enlatada, dominante, mas a estética daqueles que se doam e fazem a caminhada. 

     Talvez na contramão dos tradicionais roteiros do cinema, que cada vez mais assumem ‘linhas de ordem’ “se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar, se querem totalizantes, para não dizer totalitários. Programas que não se ocupam daquilo que o real lhes escapa, que se imaginam sem restos, sem exterioridade, sem tudo que estivesse fora do cálculo (...) temem aquilo que lhes provoca fissura, que os corta, os subverte... afastam o acidental e aleatório” .
     Os filmes e as fotografias, bem como os diários e os modos ensaísticos de escrita que arriscamos, funcionam aqui como dispositivos  a cartografar o caminho enquanto se caminha em seus encontros e desencontros, com suas cenas por vezes, borradas, não ‘bem’ enquadradas, suas incongruências e incoerências.
     Podemos compreender, com Deleuze, os dispositivos como um conjunto multilinear, que operam por linhas em um processo sempre em desequilíbrio, linhas que se aproximam e que se afastam seguindo em diferentes direções: “linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, etc” . Os dispositivos são demarcados por aquilo que têm de novidade, de invenção, e contém a capacidade de se “transformar ou se fissurar em proveito de um dispositivo do futuro” . Operam em meio a jogos de poder e saber dos quais emergem e são condicionados, o dito e o não dito são elementos dos dispositivos. Têm função estratégica, agem sistematicamente. Manipulam as relações de força operando racionalmente sobre estas, seja reforçando-as, desenvolvendo-as, utilizando-as ou bloqueando-as. 
Claro que a intuição não se faz do nada. Mas há um Coletivo de forças a ensaiar junto a invenção de narrativas que possam revelar o encontro ético com o outro, não objetivando escrever sobre um assunto, uma pergunta, um objeto, um problema, mas expondo “os caminhos que o encontro com o assunto-pergunta-objeto-problema provoca em nós (outros) e o que fazemos com isso. Para tanto, criamos uma diversidade de dispositivos que nos permitem contar esse encontro. Assim, afirmamos a escrita de diários, biografias (Barthes, 2004), crônicas, ensaios (Larrosa, 2016), a produção de paisagens sonoras, relatos mínimos, fotografias expandidas etc.”  Alguns dispositivos construídos coletivamente como vídeos, documentários, fotografias, desenhos, costuras e bordados não necessariamente promovem a escrita, mas são agenciados como força expressiva, como uma expressão da aposta na micropolítica da diferença que se narra também com outros contornos metodológicos. “E potencializam acolhendo o outro porque transformam a escrita em problema que pergunta ao interior dela mesma permitindo, talvez, a emergência de alguma coisa que ainda não é.”   
     O trabalho desenvolvido pelo Imago, grupo de pesquisa coordenado pelo Prof. Dr. César Leite , também nos insPira há algum tempo. Em especial, suas formas longe das fôrmas e sua estética. Uma estética que traz para a cena imagens produzidas por pequeninas mãos a experimentar dos seus modos a câmera, “em produções deveras autorais, que dizem respeito há um tempo experiência, a uma brincadeira sem fim (...) as imagens produzidas pelas crianças pequenas em seus devaneios são de uma intensidade que aponta para outros olhares o que não pode ser capturado/transformado em prisão, uma liberdade que propaga a rumos desconhecidos.”  E que nos deixam uma assombrosa sensação de abertura.

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Comolli, 2008, p. 172 e 177.

Deleuze, 2011b, não paginado.

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Deleuze, 2011b, não paginado.

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Deleuze, 2011b, não paginado.

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Foucault, 2008a; Castro, 2016.

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Ribetto e Busquet, 2022, p. 29.

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Prof. Dr.  César Donizetti Pereira Leite (UNESP – Rio Claro).

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Barbosa et al, 2019, p. 111 e 116; Leite, 2021.

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“Deparo-me, na pág.5 com um rizoma formado por palavras: na mesma linha-raiz em sequência, leio Diferença – Arte – Pesquisavida. Estranhamente, durante a pesquisa, você não utiliza Pesquisaarte ou PesquisaObradeArte, e me parece ser isso o que tenho em mãos. Você não assume explicitamente seu texto como arte, por quê?”
“Na Pág 22, ao falar sobre as multiplicidades de linguagens que utiliza em seu trabalho, você lista alguns e completa com etc., você empurra a fotografia e o audiovisual para o multiverso do etc. Ainda que tenhamos visto seus alunos e alunas com a câmera na mão. Pergunto-me, por quê?
“Nos créditos de seus filmes, aparece: “Câmera de Filipe Mendes. Direção Arina, entre outros”... Me pergunto quando você vai começar a colocar ao lado das outras coisas que te constituem (professora, pesquisadora, artesã, dançarina)... a condição de cineasta ou realizadora de vídeo, fotógrafa etc??” (Alexandre Guerreiro, grifos no original)

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     “Estou diante de uma tese instalação, uma instalação de arte”, assim Tiago Ribeiro abre sua fala no exame de qualificação. 
     Mais à frente Alexandre Guerreiro  confessa: “enfrentei dificuldades durante a nossa dança. Não tenho nenhuma dúvida, o seu trabalho é uma dança para quem aceita dançar com ele. Mas e quem não aceita? Como alguém que não embarca na sua jornada se relaciona com ela? Talvez dance contrariado, pisando no pé.”
     Outras falas, naquele dia de qualificar, mexeram bastante comigo, entre elas, algumas que separo a seguir:

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Prof. Dr. Alexandre Guerreiro, professor no Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da FFP/UERJ.

Ribetto e Busquet, 2022, p. 29-30.

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     Entre tateios, trazemos conosco uma esburacada sacola de pistas em que, entre outras coisas, há sempre algum livro com histórias para inspirar e partilhar... Uma dessas histórias nos acompanhou durante um tempo maior e com a qual ensaiamos muitas de nossas oficinas foi “A moça Tecelã” de Marina Colasanti, em uma linda edição ilustrada com bordados manuais.

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“A Moça Tecelã”, a gente consegue contar essa história? Como? Tragam as linhas! Elas não nos obedecem. A gente dança elas e elas dançam a gente.


(Diários rabiscados do tempo presente)

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Imprevistos? Muitos! Por vezes, era um inesperado dia sem aula, o único elevador da escola quebrava, o que impedia os estudantes, que usam cadeiras de roda ou com mobilidade reduzida, de subir para as turmas, incluindo a nossa. Outras vezes, uma prova ou uma outra atividade que interrompia a sequência das oficinas. Em alguns momentos, problemas técnicos com os simples equipamentos de que dispúnhamos. Algumas perdas de arquivos quase prontos, refilmagens, conflitos, acordos e desacordos, quedas de energia... Todas essas questões também compõem, pelo meio, a experiência do oficinar que se inventa a cada encontro.


(Diários Rabiscados ao fazer o caminho andando)

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     Esse filme foi composto com fragmentos da experimentação que fizemos em nossos encontros entrelaçados com a história d'A Moça Tecelã. Nesse vídeo, fabricamos uma costura de diferentes momentos ao longo das nossas oficinas no ano de 2022. Costuramos esses momentos ao recontar e reinventar a história de “A Moça tecelã” em narrativas coletivas, singulares, jogos corporais e experimentações diversas. 
     No trabalho que compomos aqui, não há uma forma única, ou um roteiro prévio (como um storyboard, por exemplo, que muito utilizamos nas oficinas de animação dos anos de 2017-2018), nem mesmo a produção de uma legenda unificadora a posteriori, mas uma grande experimentação ao longo de cada encontro.  Talvez juntos em um trabalho de produção de vídeos sem roteiros prévios, tenhamos nos dado a chance de nos “ocupar(mos) apenas da fissura do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita” .
     Após diferentes encontros e experimentações, fomos reunindo fragmentos de oficinas nas quais trabalhamos determinados exercícios, temas, composições etc., e com esses fragmentos, fomos compondo os filmes curtos que trazemos ao longo desses platôs. Entre milhares de fotografias, centenas de horas gravadas, por vezes com câmeras esbarradas a filmar o teto, com câmeras roubadas em uma brincadeira, em imagens trêmulas de um corpo que se faz movimento, ou com câmeras esquecidas a filmar sem fim, ou posicionadas em um ângulo “perfeito”, filmando inútil sem bateria, pois que na experimentação do corpo a esquecemos. Um filme que “se forja a cada passo, esbarrando em mil realidades que, na verdade, ele não pode nem negligenciar, nem dominar” .
     Na tentativa de forjar um modo como podemos dançar juntos, viver juntos sem fazer, necessariamente, o mesmo passo do mesmo modo, mas explorando as mesmas qualidades do movimento seja na Libras, no dançar, no fotografar, no rabiscar, no bordar... mesclando exercícios mais ou menos direcionados, tendo como medida do corpo o próprio corpo e experimentando-o em movimento. Ao longo do processo, os estudantes foram contando e recontando, de modo livre, a história d’A Moça Tecelã, a partir da memória de suas afetações. 
     Ah, e como gostam de se exibir! Em especial ao contar e recontar histórias em uma língua toda deles.  Tornam-se personagens que furam os planos, “produzem buracos ou borrões nos programas (...) escapam tanto da norma majoritária como da contra-norma minoritária tal como esta é cada vez mais bem roteirizada pelos poderes” . E criam outros planos. Assumem à frente, posicionam equipamentos, enquadram como querem, orientam as crianças menores. E fazem suas regras: “– antes de mais nada cumprimente, diga seu nome e seu sinal” (...) depois disso, inventam, contam, dançam, correm e gargalham. Doam-se por completo.
     Em nosso oficinar com dança, corpo e movimento, não fazemos um trabalho com a Libras seguindo padrões de interpretação e tradução, não há legenda de tradução e interpretação neste vídeo, mas uma bricolagem de diferentes momentos registrados, em que os estudantes contaram e recontaram, de modo livre uns para os outros, a história que nos acolheu. Cada um se expressando em sua própria língua e fora dela também, inspirando-nos na Libras para produzir algo para além dela...
     Uma bricolagem de afetos.
     Diante do que vimos experimentando, na qualificação, nosso amigo Alexandre nos presenteia: “seu trabalho me remete à contribuição de Jean-Louis Comolli (2008): ‘Filmar os homens reais no mundo real significa estar às voltas com a desordem das vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro, necessidade do documentário.’”. E compartilha conosco a ideia de cinema documentário, que, como podem perceber, já esburacou nosso texto por aqui.
     O que nos apresenta me encanta: o quão cartográfico pode ser um documentário! (confesso que descobri apenas recentemente). Assim gaguejando (sempre titubeantes) arriscamos pequenas aproximações e catamos também algumas pistas do cinema documentário que nos ajudam a pensar nossa cartografia. 
     O cinema documentário (e a cartografia) não está apenas aberto, mas furado, atravessado, esburacado pelo mundo. Completamente exposto: dependente da boa vontade de quem se doa. Esses que filmam e que filmamos (os surdos da EMPF e seus professores) “que nessa relação aceitaram entrar, nela irão interferir e para ela transferir, com sua singularidade, tudo o que trazem consigo de determinações e de dificuldades, de gravidade e de graça” com “aquilo que farão conosco (e às vezes contra nós)” (...) Eles nos atraem e nos retém, antes de tudo, porque existem fora do nosso projeto de filme.” 
     Um projeto, sob risco do real (sempre imprevisível e indomável), encontra-se aberto ao que ameaça à própria existência, uma colcha costurada pelas desordens da vida na qual “as condições da experiência fazem parte da experiência” .
     Uma narrativa confessa que reescreve o mundo “um filtro que muda as formas das coisas. A forma delas, sim, mas não sua realidade”. Mas uma versão reelaborada que “ainda que diga respeito ao fato, reconfigura-o em formas que não são mais as deles. Nada do mundo nos é acessível sem que os relatos nos transmitam uma versão local, datada, histórica, ideológica” .
     O documentário(cartografia) como algo útil, apenas para permitir a exploração do que ainda é desconhecido. Algo que se forja a cada passo, frágil e precário, movimentado pela irrupção do outro: “ao mesmo tempo que se entrega, a matéria do cinema documentário lhe escapa (...) o não controle do documentário (cartografia) surge como condição de invenção” .
     Oh, indomável imprevisibilidade! Aquilo que irrompe, que escapa... “Chamemos essa parte de ‘a parte da arte’” .

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Comolli, 2008, p. 172.

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Comolli, 2008, p. 174.

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Comolli, 2008, p. 173.

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Comolli, 2008, p. 176-175.

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Comolli, 2008, p. 169.

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Comolli, 2008, p. 173.

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Comolli, 2008, p. 177.

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Comolli, 2008, p. 178.

Comolli, 2008, p. 170.

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