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platô gaGuejos

Intenções (ou gaguejos de uma professorarteira)

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Ao trilhar caminhos no campo da Educação, na escola, na escola Paulo Freire com estudantes surdos, na vida com arte e, mais recentemente, tendo vivido experiências em uma companhia de dança com bailarinos que fazem da cadeira de rodas sua forma pujante de expressão de vida, essas travessias me provocam. Essas travessias me incomodam e provocam deslocamentos. 
 

Algo move dentro de mim, ao ver como essas pessoas, a despeito de tantas barreiras, a despeito dos selos, dos rótulos, dos nomes e avaliações que recebem todos os dias, produzem a própria existência como resistência. 
 

Produzem a própria vida como potência, produzem a própria vida como uma obra de arte. (CARDOSO, 2019, p. 139-140)

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Sacolejando...
        
     “A vida como uma obra de arte” . Com essas palavras interrompo uma pesquisavida e deixo minha dissertação de mestrado aberta ao mundo (pois que nos resta o abandono, a interrupção, sem nunca acabar de fato ou mesmo concluir).

        No final da pesquisaescrita do mestrado produzida no encontro com estudantes surdos, outros encontros acontecem e sou afetada também pela perspectiva de pensar a arte como um modo de fazer a vida, em um encontro, ainda inicial, com Foucault  a partir de uma disciplina Sujeito e Sociedade ministrada pela profª Drª Rosimeri Dias, no Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da FFP-UERJ. No encontro com Deleuze , através das conversas e leituras feitas no Coletivo, em especial, na leitura do texto “A vida como obra de arte” . Texto no qual Deleuze traz para cena a vida e pesquisa de seu amigo e intercessor Foucault, apresentando os processos de subjetivação como produção de um modo de existência, e o que chamou de ‘regras foucaultianas’, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que produzem a existência ou estilos de vida, que em meio à relação de forças buscam curvar a força, produzindo uma dobra, algo que nos permita resistir, pulsando vida . “Quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos constituirmos como ‘si’, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente ‘artistas’, para além do saber e do poder? Será que somos capazes disso, já que de certa maneira é a vida e a morte que aí estão em jogo?” . Pois, “a ideia do bio como um material para uma peça de arte estética é algo que me fascina”  e também me encanta pensar a vida e a arte a partir de Nietzsche  como vontade de potência. 
     No encontro também com a Cia Holos de Dança e Teatro Inclusivo, uma companhia formada por bailarinos, atores e músicos das cidades de São Gonçalo, Niterói e Rio de Janeiro, com local de ensaios no Centro Cultural da Faetec, em Niterói-RJ. Essa cia busca fabricar um trabalho pujante de arte com corpos em sua potência, todo e qualQUER corpo. Os bailarinos forjam modos outros de se expressar, relacionar-se com o mundo e de se locomover, em especial, sobre rodas. Atravessar e ser atravessada pelos corpos que compõem a Cia Holos tem me ajudado a continuar pensando e problematizando no campo da diferença. 
     Suspeito que, talvez, nesses encontros que fui(sou) afetada, começo a pensar um modo outro de fazer arte, de fazer a vida movida pela arte, em especial, no encontro com estudantes chamados com deficiência na escola pública.  
     Durante o mestrado, fui trans(de)formada de muitos modos, meu corpo, meu olhar, minha disponibilidade, um turbilhão de coisas me passava. Coletivamente, com estudantes, com a escola e com o Coletivo Diferenças e Alteridade na Educação, pudemos produzir uma pesquisaescrita forjada no encontro com estudantes surdos em uma escola pública de Niterói – RJ. Ao mesmo tempo, experimentava novos e outros caminhos na dança com pessoas que vivem a corporeidade de outros modos, diferente dos modos tradicionais que o próprio campo Dança, enquanto campo disciplinar majoritário tradicionalmente impõe – pois ainda é muito presente no meio da Dança um conjunto de regras estabelecidas sobre os padrões corporais ideais.  Nesses caminhos novos e outros, sou atravessada por bailarinos da Cia Holos de Dança e Teatro Inclusivo, bailarinos que o padrão de normalidade costuma nomear como pessoas ‘mais velhas’, ‘acima do peso’ e ‘deficientes’. 
     No momento de fechamento de uma pesquisaescrita de mestrado que coloca a própria noção de movImeNTO em questão, encontros me afetam: encontros com surdos na escola, com surdos artistas, com adultos e idosos ao ingressar na EJA  como professora de apoio em um novo concurso, e o encontro com bailarinos com corporeidades que não se encaixam em um suposto padrão de normalidade. Nesses encontros, é lindo e tocante o modo como essas pessoas fazem arte, o que produzem enquanto obra de arte... Mas, algo em mim havia mudado, meu olhar já não era mais o mesmo. O que realmente me sensibilizou foi a pulsão da vida! Mais que a obra material ou imaterial que produziam, percebo que neste processo volitivo produzem a própria vida em um constante movimento de criação e destruição, criando e recriando-se a partir de, e com escombros. 
     Nesses novos e outros caminhos, o que me toca é como uma senhora de 83 anos, analfabeta, após a morte de seu companheiro, que se liberta das amarras que a prendiam e decide voltar a sonhar com a escola (minha avó e outras avós que encontro na EJA). O que me sensibiliza é como os surdos transformam uma língua proibida em potência de vida, em arte e expressão da própria existência. O que me afeta é como corpos tidos desviantes e incompletos, giram, correm, saltam e dançam e fazem disso sentido para suas vidas... e me fazem movida (mo-vida... Comovida! Como-vida!) 
     O que me apaixona é a ideia de pensar a vida como vontade de potência . E isso me provoca a problematizar, a partir da escola, com estudantes surdos e da dança: O que seriam os tais processos de estetização da vida? Como se forjam processos de singularização que produzem a vida de outros modos nas fugas ao que está posto para os corpos ditos deficientes? Isso me desloca a ideia de que todo e qUALquEr corpo pode tudo , e me provoca a utopia de uma escola como um lugar em que se acredita na potência de c.a.d.a. um para fazer qUALquEr coisa. Uma escola que leva ao extremo a ideia de que não existe nenhuma limitação entre aprendizado e o corpo que aprende, pois nem o que o outro pode aprender, nem o que tem que aprender estão predefinidos . Nessa profusão de acontecimentos e novos deslocamentos, tira-me completamente o chão a ideia absurda de pensar, acompanhada de outros : a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte.
     Poderia a escola ser pensada como um lugar de formação pela trans(de)formação de si? Um lugar de travessia ao mundo e não apenas um lugar de seleção de certas partes do mundo  para todas, QUAISquer e c.a.d.a. vida nela presente? 

 

“O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?” 
 

     Encontro, pelo caminho, pessoas que fazem da vida uma obra de arte, para além do sentido da arte em suas diferentes linguagens (dança, teatro, cinema, escultura e música, por exemplo). Pessoas que se produzem, sobretudo, como artistas da própria vida, que usam as diferentes linguagens da arte, e os cacos de sua própria destruição para se  produzirem e se tornarem quem são, é que “o eu não nos é dado(...) temos que nos criar a nós mesmos como uma obra de arte” . Artistas que cantam, dançam, atuam... mas, para além disso, artistas da própria vida, produzindo outros modos de existência a partir de, e com a dança, e o teatro, e a música, e a costura, e o desenho, e os cacos e os restos...

Inspirada em Deleuze, 1992.

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Foucault, 1995, 2006a

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Deleuze, 1992; 1988.

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Deleuze, 1992.

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Deleuze, 1992.

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Deleuze, 1992, P. 124

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Foucault, 1995, P. 260

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Nietzsche, 2008.

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Educação de Jovens e Adultos

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Nietzsche, 2008

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Masschelein e Simons, 2014; 2019.

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Masschelein e Simons, 2014; 2019.

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Deleuze, 1992; Foucault, 1995, 2006a; Nietzsche, 2008, 2012, 2021; Masschelein e Simons, 2014; Skliar em entrevista a Sampaio e Esteban, 2012.

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Masschelein e Simons, 2014; 2019.

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Foucault, 1995, p.261 (entrevista)

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Foucault, 1995, P. 262

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Cia Holos
Reproduzir vídeo

Vídeo: Cia Holos

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Para acompanhar e conhecer um pouco mais do trabalho da Cia Holos acesse: https://www.instagram.com/ciaholosdedancateatro/

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Catando...

 

     A dança sempre foi para mim uma prática, um modo de fazer a vida, não uma profissão e menos ainda uma questão acadêmica. E nunca foi apenas dança, mas algo sem nome que venho experimentando como um fazer artístico múltiplo e multiforme construindo modos outros de dançar a dança. Não pesquiso sobre arte: eu danço, eu canto, eu desenho, eu vivo em meu corpo a arte... O processo importa mais que o produto, o processo me forma, deforma e transforma. A partir dos encontros tecidos ao final do mestrado, comecei a pensar também de outro modo a caminhada que venho trilhando com a arte, problematizando meu próprio modo de vida, um modo viventedançante, pensando em coisas que até então não havia pensado, mas experimentado na carne: a dança, ou melhor, os efeitos nos entres

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que a dança pode fazer emergir como um possível modo de fazer a(na) vida. Começo a relacionar com possibilidades que se anunciam e aprendizados outros: pensar a dança como algo que pode ser chamado de ethos, algo que permite produzir modos outros na vida, singularização. Talvez a dança, o corpo, e o movImeNTO sejam um caminho para pensar aqui esse ethos, um modo artesão de produzir a própria vida, um “torna-te quem tu és” e um “sê tu mesmo”.

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Nietzsche, 1999. Shopenhauer como educador.

     Para além de uma bailArina, sinto que sou um corpo que dança a vida... mais que uma artista, uma arteira a compor de forma artesã modos corpóreos de se relacionar com o outro, modos de dançar a dança... Um corpo a dançar a vida em todos os espaços que ocupa, em especial, na escola, ao se relacionar com crianças, jovens e adultos mediada pela cinestesia do corpo que forma, deforma e transforma uma professorarteira
     A partir do encontro com outros e da pesquisaescritavida de mestrado, começo a problematizar também meus próprios modos de funcionamento na escola. Sou composta pelas relações corpóreas que me atravessam, no toque, na sensação, no gesto, na Libras, no movimento, em especial pela dança, posto que tudo em meu corpo se transforma em dança – a escrita por linhas e parágrafos e páginas possui sérios limites para, em alguma medida, expressar isso que fazemos com nossos corpos, o modo como vivo a própria corporeidade, mas tentemos, dentro do possível, exercitar juntos, e exercitando, ensaiando, improvisando encontremos, talvez e sobretudo, formas possíveis de escrever... “Lo que hay más allá del lenguaje no se puede decir, pero se puede sentir.” 
     Encontros multiformes me provocam a tensionar o corpo que dança também na escola, o corpo que dança a vida e que se produz nos espaços que ocupa. Desde já, é importante salientar que não estou falando de aulas de dança na escola, a propósito, praticamente, não existem momentos que, como professora, tenha separado aulas que possam ser chamadas de ‘aula de dança’ ou ‘agora é o momento de dançar’. Não. A dança acontece. DançAR é um bom modo de fazer coisas e de me relacionar com o outro: sejam os estudantes ou mesmo meus colegas de trabalho. Talvez eu possa me fazer melhor entender trazendo relatos dançantes em diários rabiscados no esforço de contar o como.

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Mélich, 2015, p.27

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Um corpo que dança e convida outros para dançar

A gente vive e a gente dança, faz parte do viver na escola a dança e por esse aspecto a professorarteira é também conhecida. Uma professorarteira, que foi também professora orientadora pedagógica, (coordenadora pedagógica) no município de São Gonçalo por quase 10 anos, e que no seu fazer diário, não resistia à alegria e ao sorriso de Myllena. Pelas esquinas e intervalos, essa professorarteira puxava a pequena Myllena para dançar, rodopiando e rodopiando-a em sua cadeira de rodas, fazendo piruetas, pegando em seus bracinhos, movimentando-me e vendo Myllena, a seu modo, arriscar ousados movimentos - a despeito de qualquer diagnóstico de encefalopatia com enrijecimento dos músculos e movimentos involuntários – nós, enquanto rodopiávamos, conversávamos e produzíamos juntas nossa língua. Myllena respondia, transbordando com seu corpo mesmo sem palavras. Myllena sempre foi muito firme em suas convicções, fazendo-se presente, fazendo-se entender muito claramente quando não quer: ‘não’ é ‘não’ e ponto. Mas quando gosta, é pura alegria, contagia toda escola e não há quem resista! Nossos improvisos em espaços fortuitos até se transformaram em um evento com todas as turmas do primeiro ano em uma festa dançante de final de ano… mas, para além de um dia de apresentação e festa autorizada, fazíamos nossas festas pelas brechas que encontrávamos no dia a dia… e dançávamos. 


(Diários rabiscados, dezembro de 2018)

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Miguel

Miguel corre para lá e para cá, não para.
Eu sigo atrás caminhando e observando, incapaz de seguir seu ritmo. Ele abre portas, entra nas salas, irrompe nas Rodinhas , as professoras o recebem com sorriso acolhedor, mesmo com a agitação que se segue entre as demais crianças. 
Miguel corre em minha direção no pátio, grita, e se bate, e me agarra, e me puxa, e me empurra. O que houve? Algo aconteceu? Não consigo compreender, um lampejo de preocupação passa por mim, mas, desta vez, logo se esvai, arrisco responder na mesma língua: agarro os braços que me agarram, suas mãos em torno da minha cintura, e rodopiamos juntos o corpo dele e o meu. Cantarolo e rodopiamos, apenas rodopiamos. Miguel olha para o céu, absorto, atento. O corpo regula, o dele, e o meu, o meu com o dele. Paro cansada e tonta. Miguel parece não se abalar, continua abraçado, fitando as nuvens. Pouco depois senta e concentrado começa a catar alguma coisa minúscula no chão. A campainha toca, alguém me chama, é minha avó com um embrulho nas mãos.
-  À bença vó!
- Você não disse que ia chegar tarde hoje? Toma. Esqueceu seu lanche em cima da mesa. Eee... Deus te abençoe!


(Diários rabiscados, 2019)

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Rodinha: uma prática bastante comum na Educação Infantil, na rede municipal de Niterói e, em especial, em nossa escola que não tem muito a ver necessariamente com a forma de um círculo, mas com uma disposição da nossa atenção onde sentamos todos juntos crianças e professoras para conversar sobre diferentes assuntos, ouvir o que as crianças têm para dizer, contar e ouvir histórias, cantar e dançar. Um momento coletivo em que nos voltamos para o outro a fim de nos produzirmos nesta troca.

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Libras

Algum tempo atrás – quando os dias eram infinitos – uma jovem normalista, que passava os dias a bailar o ofício de ensinar, transitava por dias à espreita, namorando a expectativa da aproximação... seus olhos arregalados sorvem o que veem: as mãos. O movimento das mãos... o ar parecia dançar junto com movimentos intensos, gestos apressados e urgentes, dedos leves, peritos, corpos que pareciam bailar guiados por suas mãos....

Por vezes, uma pesquisa nos atravessa muito antes de seu suposto início oficial. Sem um ponto específico de origem ou mesmo um lugar preciso de conclusão, mas algo que simplesmente atravessa (...)
“Estava sentada longe com algumas colegas, e o grupo de surdos havia chamado nossa atenção, em especial, o modo como se comunicavam com as mãos (...). Em nosso parco entendimento, eles eram “surdos-mudos”. Minhas amigas e eu olhávamos de longe durante alguns dias, e conversávamos sobre eles, mas todas estávamos tímidas para tomar a iniciativa de aproximação. Até que um dia tomei coragem e disse: “Eu! Eu vou! Vou me apresentar para eles”. Aproximei-me do grupo e disse um sonoro “Oi”, em português. Apenas Karin me respondeu, os outros ficaram me olhando desconfiados. Iniciei uma conversa com Karin sobre o ano em que estavam, em que prédio estudavam, e o que eram aqueles movimentos que faziam com as mãos: Libras. Karin me apresentou a cada um deles e seus sinais: Fabiano, Marion e Gabriela. Mostrou-me como dizer ‘oi’ em Libras... Lembro que algo que se estabeleceu de imediato, foi um primeiro gesto: o olhar. Um contato pelo olhar (...) A partir desse momento, todos os dias, procurava-os no pátio na hora do intervalo e arriscava conversas... [cada gesto, cada fluxo, cada sinal, guardava comigo como um berloque, eu repetia e repetia, pulsando sua dança pelo caminho da escola até em casa].


(Diários Rabiscados de 2004.

In: Cardoso, 2019, p.24-25)

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Um corpo que dança em formAção
sai da forma,
e dança
entra em ação.
A dança pode ser uma forma
de sair da fôrma?
E deforma-se e forma-se?
Um corpo em deformaAção
uma ação?
Um gesto sem forma mas que deforma?

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     Tenho (me)produzido pela vida atravessada por um imbricado movImENto de dança, educação e diferença. Um movimento que me produz de outros modos, fazendo-se experiência em mim como um território que padece e que se transforma. 
     Desde bem pequena, componho um corpo que dança, mas minha formação na área não se deu de modo institucional, metódico e contínuo. Ainda na primeira infância, perco minha mãe, que de algum modo já percebia meu interesse na dança e me incentivava. A partir dessa perda, em um momento financeiro muito difícil, meus irmãos e eu precisamos viver algum tempo como internos na FIA  e na casa de outros, até que um tempo depois, nosso pai nos levou para morar com ele. Após a partida de nossa mãe, com três filhos muito pequenos, meu pai se vê diante de um enorme desafio.

(…)

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     O que eu lembro? Eu lembro que não fazia dança(em mim). Eu lembro que fazia frio... que os beliches eram muito altos, que havia brechas no telhado por onde, à noite, eu via o céu. Mas era um céu ruim, um céu frio, distante, com uma Lua Cheia deformada pela teimosa sombra de um Lobo Mau... 
Um lugar distante dos pais chamado Fundação para a Infância e Adolescência (FIA).

 

(Diários rabiscados, 1994)

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Larrosa, 2002.

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Fundação para a Infância e Adolescência. Quando criança meus irmãos e eu ficamos abrigados um tempo na antiga unidade do Barreto, Niterói-RJ da FIA juntamente com outras crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “A Fundação para a Infância e Adolescência (FIA-RJ) integra administração indireta do Governo do Estado e vincula-se à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH) do Rio de Janeiro. É hoje o principal ente público do Poder Executivo, no contexto do Sistema de Garantia de Direitos (SGD), na área da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro.” Fonte.

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     Juntos, nosso pai, meus irmãos e eu passamos por muitas dificuldades e privações – privações essas que são comuns às de tantas famílias monoparentais, moradoras de comunidades empobrecidas, em que apenas um adulto (na grande maioria mulheres), sem atividade formal, trabalha fora e cuida das crianças pequenas em casa – mas estávamos juntos.

     A dança esteve um pouco distante durante alguns anos – tempo em que foi preciso ter outras prioridades: o dia a dia de uma menina magrela, em idas e vindas de casas diferentes, e cuidando dos irmãos mais novos... Mas, aos 12 anos, com mais liberdade de ir e vir, descobri um projeto social que funcionava em um bairro distante do bairro que morava, no Parque Municipal Palmir Silva, no Barreto (Niterói-RJ).

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     Lá havia o oferecimento gratuito de vários cursos, inclusive de dança na modalidade de Jazz. Nesse projeto, havia um aprendizado inicial, que poderíamos entender como "mais técnico" na dança. Eu, feliz, caminhava 3 km, duas vezes por semana, da comunidade onde morávamos (Coréia no bairro Fonseca) até o Barreto para finalmente aprender a dançar.

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Lá era um lugar no qual a menina magrela podia caminhar por e entre aulas de arte as mais diversas, pelo tempo que quisesse... Você entende? Pelo tempo que quisesse! “É tudo o que uma pessoa grande ou pequena pode ter a ousadia de querer” . Durante a caminhada de 3km, ela desfrutava calmamente o caminho, cada rachadura na calçada era uma grande descoberta, fingia não se importar com o que a aguardava no fim do trajeto. Ao chegar no parque Palmir Silva, olhava de soslaio para o anfiteatro onde ocorriam as aulas de dança, passeava, tocava as árvores, colhia uma flor, ia passear pelo centro cultural, espiando um pouco das outras aulas... fingia que não tinha o que finalmente podia ter. “Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece até que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.(...) Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante”


(Diários Rabiscados de um tempo infinito)

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A felicidade clandestina de Clarice, 1995, p.54.

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A felicidade clandestina de Clarice, 1995, p.55.

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     A partir dos 12 anos, ávida por experimentar diferentes possibilidades com meu corpo e dentro dos caminhos que me foram possíveis, passeio pela dança de modo híbrido, com aulas de jazz, em oficinas livres de experimentação do corpo em movimento e outras modalidades na dança em diferentes momentos, uma formação que é também marcada pelo jogo teatral, que afetou muito o modo como passei a conduzir o trabalho com dança. 
     Em determinado momento, com interesse em participar de oficinas de teatro de menestréis e viver outras possibilidades no trabalho com jogos musicais, trabalhei durante um tempo como coreógrafa voluntária em um curso livre de Teatro no bairro da Tijuca (RJ), em troca eu participava das aulas também como cursista. Ali tive contato com diferentes técnicas corporais, em especial, o modo menestrel de fazer teatro musical em que os atores cantam, dançam e atuam, a partir de um conjunto de técnicas organizadas inicialmente pelo artista Oswaldo Montenegro, o chamado método do reflexo , que a partir do jogo teatral propõe uma série de experimentações com o corpo, através da música para a criação de cenas. 
     Nessa dançavida estive sempre em busca de projetos sociais e oficinas gratuitas que pudesse encontrar sendo oferecidas pelo setor público, por associações, por empresas, ou instituições religiosas, sorvendo avidamente o que eu conseguia em um trilhar artístico bastante híbrido: com dança, teatro, pantomima, xilogravura, mosaico, desenho, pintura, circo, canto, música, crochê, bordado, cestaria, tapeçaria em jornal, além de arriscar experimentar outros caminhos, mesmo sem conseguir ter uma formação mais específica, como o desenho, a fotografia, o cinema e etc. As conexões que fui produzindo a partir de projetos sociais me marcaram, transformando-se em pulsão no trabalho com dança em diferentes movimentos sociais como voluntária.

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“O método que trabalhamos chamamos de método do reflexo. É trabalhar a intuição, a percepção, o reflexo do aluno. Isso foi uma coisa que o Oswaldo Montenegro já trazia ao treinar o elenco de seus espetáculos. Mas era apenas uma coisa intuitiva na cabeça dele, porque ele queria que os artistas fossem um pouco mais dinâmicos, não ficassem elucubrando demais antes de fazer alguma coisa. Então ele dava os exercícios para que as pessoas agissem rápido, sem medo de errar. A gente usa primeiro uma técnica para treinamento do elenco, não só para peça, mas para vida(...). Mas sempre focando nessa coisa do junto, do team work, do coletivo, da coisa de não ter medo de errar. De ser responsável no treinamento, no horário, no estudo, para quando chegar ao palco não ter medo de errar.” Fonte,  Acesso em: 28/12/22.

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     Ao longo dos anos, passei por vários projetos. Um deles, aquele em que trabalhei mais tempo, acontecia em uma igreja protestante na cidade de São Gonçalo-RJ, onde recebíamos jovens de diferentes idades e localidades da cidade interessados em dançar, a grande maioria nunca havia tido contato com dança. Em nosso trabalho, buscava acolher a todos, quanto mais melhor, independente do gênero, sexualidade, de haver ou não algum diagnóstico de deficiência, da ideia de que um ou outro corpo não estaria dentro de padrões tidos ideais para dançar. Padrões estéticos de modelos de corpos codificados, com condicionamentos específicos imperantes até hoje na dança desde as modalidades mais tradicionais às mais novas . 
     No início, ainda não possuíamos formação ou mesmo referências para o desenvolvimento de um trabalho do modo como imaginava e desejava, mas acreditava com paixão que o modo de fazer seria com os corpos que lá estivessem, com os corpos em sua disponibilidade, quaLquER corpo, independente de experiência ou características físicas. Para tanto, criamos estratégias. O projeto originalmente era de oficinas de dança, tendo-se iniciado no início dos anos 2000. Fiz parte do projeto como coreógrafa por quase 20 anos, 10 como coordenadora. Todo esse tempo no espaço de uma igreja protestante, talvez por isso, e também pela natureza do projeto, a maior parte deles era adolescentes e evangélicos.

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Marques, 2011.

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     Conforme íamos agregando gentes, sentia que necessitava de outros modos de fazer, eu não queria perder ninguém e buscava que todos pudessem ter a oportunidade de desenvolverem seus potenciais para arte ao máximo, pois alguns apresentavam maior interesse em dança que outros, alguns para o balé, outros para dança de rua, alguns tinham grande potencial para atuar, outros eram músicos, outros gostavam de cantar e não curtiam muito dançar, mas queriam fazer parte, estar juntos com os demais. Era necessário trabalhar constantemente com o grupo – em especial em mim – o medo, o medo de errar, o medo de arriscar possibilidades outras para expressar-se com o corpo através da arte, o pudor e a vergonha do próprio corpo com adolescentes, vivendo suas mudanças. Trabalhávamos a consciência corporal a partir da movimentação natural do corpo, experimentávamos possibilidades de movimentação, a relação com o corpo do outro, o toque do olhar, o toque físico, o toque da respiração... corpos que se tocavam, que se atravessavam, que se afetavam a fim de produzir uma organicidade no enlace entre corpos distintos.
     Começamos a estudar e a pesquisar outras possibilidades. Assim, aos poucos, agregamos ao trabalho com dança, as técnicas de jogos teatrais que eu aprendia no curso que fazia na Tijuca. Conseguimos trazer, também, diferentes técnicas circenses de malabares e portagem, diferentes modalidades de dança e também um trabalho com música e canto, que já faziam parte do ambiente religioso onde estávamos. Foi necessário produzir parcerias, chamar pessoas para ensinar técnicas diferentes. Paralelamente, o grupo se dividia, fazendo também aulas de algumas dessas inovações que foram inseridas. Dessa forma, produzimos espetáculos bastantes híbridos para um grupo apenas nomeado pela dança. 
     Tudo isso acontecia em uma igreja, com apoio e financiamento de uma instituição religiosa tradicional. Para completar o cenário, entre os jovens que faziam parte do grupo, havia um que era homossexual. 
     Não foi nada fácil encarar e levar à frente este projeto neste espaço religioso, trabalhando com todos os que queriam estar juntos, independente de quem e ainda subverter o espaço, trazendo uma série de elementos, até então nunca vistos ou vividos ali.

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“VejaM! Ele não pode dançar assim!!! Não podemos deixar isso acontecer! Esses meninos já fazem muita bagunça por aqui, a igreja é lugar de ordem e decência! Olhem isso, leiam os comentários dEle nas redes sociais... só homens sem camisa! Isto não está certo! Isso é coisa do Diabo querendo agir e corromper os jovens dentro da igreja!”


Alguém com título de pastor


(diário r(ab)iscado, 2012) 

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     Houve um tempo muito difícil em que nosso trabalho ficou em xeque, desestabilizado por um líder estrangeiro que havia chegado recentemente para compor o corpo de pastores. Alguém que se opunha ao modo como trabalhávamos. Havíamos trazido, para o espaço que ocupávamos, diversos elementos e técnicas, modos de dançar e fazer arte, era tudo novo para aquela comunidade e também para nós, mas acreditávamos que este era o modo de produzir o que queríamos com todos os corpos disponíveis. Em pouco tempo, esse pastor se aproximou das atividades que envolviam jovens e adolescentes e, insatisfeito com o modo que fazíamos, e o que fazíamos com nossos corpos na arte, expôs, de modo bastante covarde, um dos adolescentes que, à época, encontrava-se ainda em formação de sua orientação sexual e que já vivia em sua vida uma série de conflitos.
     Coisas inaceitáveis foram ditas, coisas que machucaram. O grupo foi abalado. O trabalho ficou em suspensão. Foi desesperaDOR! E, sozinha, eu me revoltava com a covardia da exposição. O jovem afastou-se. Alguns problemas surgiram também com alguns membros da comunidade religiosa em oposição ao nosso trabalho, em especial, com a ênfase dada pelo novo pastor. Precisávamos achar um caminho possível, eu não queria perder ninguém, mais que isso, eu amava aquele espaço, fazia parte dele e ansiava que ele se tornasse um lugar acolhedor e possível para todos no grupo.

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Silêncio
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...silêncio...
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Dentro de mim, berra!
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O que acontece quando o silêncio berra?
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Quando está prestes a desmoronar aquilo que lhe é visceral
Aquilo que você ama
?

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La moral nos dice qué debemos responder. La ética nos dice que tenemos que responder sin saber que debemos responder.
...
La ética no es ni una teoría ni una práctica, sino una experiencia. La ética es la respuesta al sufrimiento del otro.
Mélich 

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Mélich, 2015, p.30

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     Algum tempo conturbado transcorre... necessário fazer escolhas... necessário fazer algo, eticamente não poderia deixar de fazer algo. O que fazer? Eu ainda não sabia. Mas faria.
    Faço a escolha de continuar, continuar com o trabalho naquele mesmo espaço. Juntos, fazemos a escolha de continuar dentro. A partir dessa escolha, a solução precisava ser forjada desde dentro, no próprio sistema. Precisávamos encontrar caminhos estando dentro, mesmo que arriscando passos diferentes daqueles costumeiramente praticados em uma instituição religiosa tradicional.

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     Um tiro no escuro.
     Poderia ser um desastre. Mas o que havia (para mim) era um desastre ainda maior.
     Arriscamos, desde dentro, tentar produzir um escape, uma brecha em alguma medida criando algo novo, algo pequeno, mas novo. E ainda que apaixonados pelo que fazíamos, estávamos continuamente expostos ao risco, pela permanência ainda dentro, ao perigo de convergência e captura, e continuidades, pois éramos nós também parte daquele sistema... Não seria possível desbancar o sistema daquela instituição e suas normas eclesiásticas, já que fazíamos parte e escolhemos estar dentro. Mas, em alguma medida, foi possível provocar um deslocamento que positivasse a vida, que possibilitasse o viver naquele espaço para nossos corpos naquele momento.

Este era um tempo anterior ao reconhecimento da criminalização da lgtbfobia pelo STF através da chamada Lei de Racismo, a Lei 7716/89, algo que ocorreria apenas em 2019. Juridicamente havia o caminho via o Art. 5º, inciso XLI, da Constituição de 1988 que declara que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais", enquadrando tal conduta como violação do direito humano fundamental de liberdade de expressão da singularidade humana.

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Por um tempo ficamos perplexos,
no vazio,
estagnados...

o jovem se fechou.
(...)

Mas, o silêncio berrava!
Éramos jovens cheios de paixão... e uma das paixões era aquela comunidade e o que fazíamos juntos naquele espaço.

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     De forma inesperada, alcançamos a sensibilidade de uma liderança maior na igreja. Alguém que podia não concordar com tudo em nossa abordagem, mas que repudiava fortemente a postura do pastor em questão. Sob ameaças de processo judicial, o novo pastor não teve escolha, foi movido daquela igreja. Em pouco tempo, ele foi excluído não apenas daquela igreja, mas da instituição como um todo. Outras pessoas deixaram de frequentar aquele espaço também, algumas outras, embora criticassem o movimento que fazíamos se mantiveram. Mas havia também pessoas que nos apoiavam, o que nos fortaleceu e nos possibilitou retomar o trabalho, porém não do mesmo modo, já éramos outros, jovens cheios de paixão, muitos de nós, crescidos naquela mesma comunidade, que em uma situação pouco provável, conquistaram algo pelo qual lutavam. Fizemos nossas escolhas, ainda havia mais pelo que lutar. Mas, naquele momento, nos sentimos fortalecidos. 

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     Ane : - Arina vai à igreja pra fazer bagunça…
     Arina: - Claro! (E sistema)
     Não apenas variamos, mas também em nosso viver, mantemos, sustentamos e reforçamos os sistemas… 
     ...difícil expor isso...
     ...“não é fácil perceber as coisas pelo meio” , não é nem bom e nem mal... entende? 
     Uma multiplicidade também comporta “estratos onde se enraízam unificações e totalizações, massificações, mecanismos miméticos, tomadas de poder significantes…”  A vida se produz em intensa variação, há nela múltiplas entradas, “existem nós de arborescência nos rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes” . Produzimo-nos pela variação, mas também pela repetição e decalque. Nas instituições que ocupamos, igrejas, sindicatos, universidades, famílias, associações e, em especial aqui na escola, como um espaço no qual nos trans(de)formamos professoras, fazemos parte do sistema, funcionando também como agentes de controle da instituição escola. Mantemos e sustentamos as instituições modelares, mas, ao mesmo tempo, podemos arriscar variar por mínimos, cavando uma trincheira, escapando por uma brecha, produzindo fugas e, pelas fissuras, fabricar outros modos possíveis de fazer escola. 
     Poderia um corpo suportar a variação a todo tempo? Ser pura fuga? Todo erva-daninha? Desterritorializamo-nos e nos reterritorializamos, para novamente nos desterritorializar por ciclos descontínuos, sempre moventes, nunca sozinhos, “mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem” .  
     Por vezes, como aqui nesta pesquisaescrita, a professorarteira foge do lugar comum,  que é parte dos que regem o sistema, para um outro espaço, para uma outra escola, com outros, com surdos, a fim de arriscar variar também de outros modos, fazendo fugir com seu corpo uma língua outra, que é também fuga, dentro de outra maior, deixando escapar uma língua que foge, pelos espaços, pelos gestos, pelas intensidades, experimentando outros usos de uma língua-resistência, a Libras, ao mover-se com outros corpos que criam variações no aprender dessa língua no espaço formal e escolar. Dessa forma, arriscando outros usos para uma língua grande, a Libras, (embora minoritária) e outra ainda maior, o Português… Mas, não estamos tratando de línguas menores ou maiores, não nos importam seus tamanhos, mas os usos que fazemos delas: usos menores ou maiores dentro de uma mesma língua. 

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Conversa descontraída em um dos nossos encontros no Coletivo Diferenças e Alteridades (2022)

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Deleuze e Guattari, 2011, p.46 MP1

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Deleuze e Guattari, 2011, p.31 MP1

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Deleuze e Guattari, 2011, p.32 MP1

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Deleuze e Guattari, 2012, p.45 MP3

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Deleuze e Guattari, 2021.

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Rabiscando 
              intentos... 

 

Carrego em mim uma trajetória múltipla, um corpo atravessado      pela dança, arte e educação. Um corpo tecido nas aulas de dança gratuitas em projetos sociais voltados para jovens de comunidades pobres da zona norte de Niterói; um corpo forjado nas aulas de teatro, pagas com meu trabalho de coreografia nos projetos sociais de produção de arte, em diferentes espaços pelos quais passei; nos atravessamentos do espaço religioso; no encontro com surdos e com a Libras, enquanto professora ainda em formação no Curso Normal; na pulsão de corpos outros na Cia Holos; e pelos diversos modos como fui me trans(de)formando em professorarteira no encontro com estudantes na escola pública, em especial, no encontro com estudantes chamados com deficiência.
Em 2017, quando chego ao mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais - da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), carrego comigo uma forma corpórea múltipla. Assim, na produção das oficinas experimentais de produção de vídeos de animação com estudantes surdos, ao longo da pesquisaescrita de mestrado, não pude deixar de produzir de outro modo nossas oficinas, senão através de práticas corporais vividas, além de que uma das técnicas de animação que mais gostava passava pelo corpotodo em movimento: a técnica de pixilation .

     No mestrado, escolho tensionar o problema de pesquisa que propúnhamos ao tematizar o que nos passava enquanto juntos oficinávamos, colocando em questão: Como produzir propostas de ensino que sejam sensíveis às formas singulares de aprender de estudantes surdos, pensando o processo formativo deles, sua educação visual, através de propostas de ensino visuoespaciais na criação de roteiros e produção de animações? 
     Contudo, em nossas oficinas, mais coisas nos passaram para além daquelas explicitadas na dissertação. Na ocasião, não foi possível explicitar e problematizar de forma mais detida as práticas corporais que vivíamos quando estávamos juntos com nossos corpos em movimento. Pois que, desde algum tempo que eu não lembro (talvez desde todo tempo), é pelo corpo em movimento que venho realizando bons encontros. 
     Assim, propomos aqui, em alguma medida, retomar o que produzíamos com nossos corpos nas oficinas, a fim de forjar o problema que trazemos, o qual busca dar a ver processos de estetização e singularização da vida, operados pela arte e educação no encontro entrecorporeidades outras, através da produção de oficinas dança, corpo e movimento em uma escola pública do município de Niterói, com estudantes surdos. Esse projeto é provocado, inicialmente, pelas perguntas: Como estudantes surdos e pessoas chamadas com deficiência na escola se produzem, inventam-se em sua corporeidade e se de(trans)formam a despeito dos padrões de normalidade que organizam majoritariamente nossa sociedade? O que seriam os tais processos de estetização da vida? Como se projetam processos de singularização que produzem a vida de outros modos nas fugas ao que está posto para os corpos surdos e ditos deficientes? Poderíamos pensar o dançar, o gaguejar e o rabiscar como caminhos possíveis a produzir devires no espaço escolar com estudantes surdos, criando fissuras e inventando a vida? Em alguma medida o dançar, o rabiscar e o gaguejar com os corpos em sua potência nos dão elementos para problematizar a produção da vida, qualquer vida e c.a.d.a. uma como uma obra de arte? É possível mesmo pensar a produção da vida, quALqueR vida e c.a.d.a. vida como uma obra de arte?
     Nossas oficinas de dança, corpo e movimento foram feitas através de encontros semanais (de modo presencial) na Escola Municipal Paulo Freire nos anos de 2022 e 2023 (costuradas às oficinas que vimos produzindo desde 2017).  Nestes encontros, buscamos produzir juntos momentos de experimentação corporal a partir das possibilidades do movimento dos corpos disponíveis, a partir da movimentação natural do corpo, experimentando possibilidades de movimentação, na relação com outro corpo, corpos que se tocavam, que se atravessavam, que se afetavam a fim de produzir uma organicidade no enlace entre corpos distintos em suas potencialidades.
     Compreendemos a surdez não como uma deficiência, mas como uma experiência visual, entendida fora do campo da medicalização. Em nossas práticas corporais, a Libras é a nossa pista de dança e bom modo de produzir e nos relacionarmos com o mundo. 
                Assim, buscamos experimentar, com nossos corpos, a potência artística de corpos que se movimentam em Libras em uma multiplicidade de possibilidades, produzindo uma educação que toque o viver, problematizando a produção da vida, qualquer vida e c.a.d.a. uma como uma obra de arte. Através das linguagens corporais e visuo-espacias da arte, entre elas a dança, e da Libras, nossa ênfase se dá na experimentação e no desejo mais que no produto, naquilo que acontece quando corpos se encontram, enlaçam-se, e se afetam na arte e na educação ao modo cartográfico como “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” . Para tanto, em nossa pista, buscamos inspiração também na partitura corporal de Rudolf Laban  que nos aponta pistas para a produção de um trabalho em dança como arte do movimento com ênfase nos processos criativos e na experimentação em uma relação corporal com a totalidade da existência, produzindo pessoas mais livres capazes de expressar criativamente em seu contexto. Uma expressão que é estética, mas também ética e política.

“O termo tem ligação com as palavras pixy e pixie, que significam “fada, elfo, duende” (nada a ver com pixel ou pixelation, que é outra coisa!). Seria uma espécie de mágica que anima “coisas” que não foram feitas com a função de serem animadas, de modo muito parecido com os antigos Trick Films do Méliès. O Pixilation é uma variante do Stop Motion, que foi se desenvolvendo como um estilo diferente de outros trabalhos em Stop Motion. A principal diferença é o uso de pessoas reais no lugar de bonecos. O ator se torna um tipo de boneco vivo, utilizando os mesmo princípios da animação para exagerar os movimentos e conseguir situações que seriam impossíveis na vida real. A estranheza dos movimentos não naturais executados por seres e objetos iguais aos de uma filmagem live action é o que constitui a base do Pixilation. O resultado é uma visão surreal da nossa realidade. As leis da física já não se aplicam mais, uma vez que estamos usando animação, mas como o ambiente e os personagens são reais, o filme ganha um tempero a mais.” Fonte.

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Rolnik, 2016, p.23.

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Laban, 1990.

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     Penso que a expressão mais forte dos encontros que estamos arquitetando com os estudantes surdos é a dança. Mas, devido à própria trajetória formativa híbrida e descontínua que tenho experimentado, não consigo, em muitos momentos, não falar de modo mais amplo em arte. Por um duplo motivo. Porque nesta trajetória implicativa, no encontro com outros, produzimos nossas formas de dançar e se expressar artisticamente, mediados por diferentes linguagens da arte (dança, teatro, pantomima, técnicas circenses, desenho, grafite, música, cinema, fotografia, animação etc.) que foram idealizados no processo de buscar estar juntos para dançar e que hoje são parte do meu modo de fazer na dança. Mas, não apenas por compor um trabalho com múltiplas linguagens, mas principalmente por, nessa trajetória, buscar compor, através das diferentes linguagens, a criação de algo novo, em fugas ao que está posto, no sentido RaDical de arte. A arte como um modo de fazer, como forma mais que conteúdo, a arte como criação de sensações , como potência de viver, como “um modo específico de tentar compreender os

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Adorno, apud Duarte, 2012; Petry, 2014

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Deleuze e Guattari, 1992.

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efeitos produzidos pelos objetos estéticos cujos impactos se refletem – como num jogo de espelhos – em novas formas de subjetividade que não cessam de proliferar linhas de fuga responsáveis por escapar da normatividade dos dispositivos.” 
     Arte como criação de algo outro, como uma fuga, como um desvio, como um gesto profanatório em alguma medida a destituir as coisas, o tempo e o espaço de seus usos comuns . A arte na experiência-limite  vivida, sofrida e criada nos (des)encontros com minhas avós na pandemia, na infância pobre na favela, no espaço religioso tradicional, na escola como professorarteira,  no rabiscar qualquer possível da vida, na solidão do distanciamento físico provocados pelo víRus, na produção de outros modos de conversar com minha avós e com os estudantes no presente em crise, ou na decisão de arriscar um modo outro de fazer na própria qualificação de mestrado ao dançar em Libras.

     Diante disso, penso que o objeto que se projeta aqui passa pelo corpo, pelos corpos que com sua corporeidade desafiam regramentos e se produzem dos modos como querem. Como aqueles que inquietam e incomodam com sua presença os bons costumes e suas normas e que “até mesmo quando falam de si, em uma língua mais ou menos inteligível, eles perturbam os nossos esquemas representativos, pois, ao dizerem-se de outros modos, põem em cheque (sic) a exatidão dos nossos modos de dizer, de dizer-nos humanos” nos provocam em “um encontro com a alteridade que (nos) expõe e põe em risco, depondo os próprios saberes do campo pedagógico.”  E nos mostram que é possível fazer outros usos da corporeidade e imaginar outras formas possíveis de viver.

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Vivar e Kawahala, p. 02, 2017.

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Agamben, 2007.

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Foucault, 2009.

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Nunes, 2018, p. 16 e 81

     No encontro rugoso entrecorpos, talvez ao dançar, ao rabiscar e ao gaguejar, seja possível pensar de outros modos o que tem sido feito das nossas vidas, e em um estando dentro, em alguma medida estar fora, fabricando pequenos desvios e produzindo algo ¬ para si, ao questionar e pôr em xeque o que a normalidade espera de nós. Quem sabe assumindo a ideia absurda de que todo e qualQUER corpo pode TUDO . A vida, qUALquEr vida e c.a.d.a. uma como uma obra de Arte, pensando a vida pelas brechas, como alguma coisa que projetamos pelo que escapa – pelas gotas que escorrem entre os dedos, pela jura de mindinhos enlameados, pelos olhos do menino entre as frestas da cerca –, em alguma coisa que nos possibilite, ao menos em instantes ínfimos: “tener alguna autoría en lo que somos” , fazendo-nos artistas do que vamos nos tornando.

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Masshelein e Simons, 2014

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Barrionuevo, 2022, p.23.

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